sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Nome científico




Hoje fui às compras. Comprei um nome científico para a doença cuja prima – já bem conhecida – atinge o corpo, silenciosa e traiçoeiramente. Esta também faz isso, mas começa pela mente. Se tivermos sorte, talvez um dia possamos encontrá-la no Wikipédia assim:

Diabesta mallocus – Doença metafísica caracterizada por um aumento da desorganização mental. A mente é a principal fonte de energia psíquica do organismo, porém, quando essa energia se apresenta extraordinariamente desorganizada, sem destinação nem esgotamento, pode trazer várias complicações. É a capacidade psíquica que possibilita ao sujeito trabalhar sobre as emoções e os sentimentos a partir das ações de seu intelecto. Entre os efeitos desse desequilíbrio podem-se citar o excesso de agressividade – latente ou manifesta, a incapacidade de lidar com frustrações, problemas de relacionamento consigo próprio e com os outros, no trabalho, no amor. Quando não enfrentada adequadamente, o quadro pode evoluir produzindo “ataques de nervos”, histeria, depressão, melancolia, lesões emocionais de difícil cicatrização e tratamento; além de possivelmente transmissíveis. Embora não haja cura definitiva para o (a) Diabesta, há vários recursos disponíveis que, se o sujeito tiver vontade e coragem pra querer, possibilitam mais qualidade de vida. É uma doença bastante comum, mas muitos pacientes desconhecem ou negam a possibilidade de serem portadores desse mal-estar que afeta muito mais que a si mesmos.

p.s. A foto e o sobrenome mostram que a Diabesta manifesta-se também através do solo sobre o qual se assenta uma sociedade com alta taxa de infestação. Nele, as lesões  sorrateiras incluem os escorregamentos; as lesões oclusas, a contaminação e extermínio das nascentes. Isso tudo acontecendo no fundo dos lotes, no fundo dos vales, no fundo do intelecto já tão parcelado e desmembrado desse sujeito urbano que somos nós.
Bairro Paraíso, Belo Horizonte, 18-12-2013

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Paragem, adiantamento.


Hoje fui às compras. Comprei uma passagem. Não um lugar numa nau, mas um percorrer, um estar-a-viajar. Uma passagem de graça, para a graça nada gratuita de embarcar num transtemporal atracado na Pça 7. Transformidável, temperado de cores e Drummonds para apimentar e tirar lágrimas dos olhos. Transabsoluto, advindo do Cais de Pessoa, para onde se está sempre de partida. Transôntico, recheado de objetos e estruturas transcendentais. Transposto, transpirado.  Transklimt, transpicasso. Transfluido, mas de um concreto transantecipado de um Brutalismo Baumgartiano que inspira. Na fluidez do concreto, uma duração. Na precisão de uma vida, um Portinari. Na dureza do mundo, uma multidão.

p.s. A imagem é do Friso Beethoven, que Klimt pintou em 1902. Como não ver em Guerra e Paz esses cabelos, essa profusão, esse aprendizado? Como não ver Guernica, em Guerra, e Alegria, na Paz? Como aprender com os mestres sem esquecer que "a realização mais suprema e rara consiste não em descobrir o desconhecido, mas em explorar a existência diária, as possibilidades abertas a todos para a máxima riqueza de seu potencial de realização enquanto ser humano"? É, Nietzsche, infelizmente você não viu, mas assim pintou Portinari. 


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

"Pórtico partido para o impossível"


Hoje fui às compras. Comprei um portal mágico através do qual trocam-se e compartilham-se objetos transcendentais. É como se os sentidos se materializassem em todos os sentidos. Algo de que você fala e que o outro passa a ver, sentindo. Algo sobre o que se ouve tornando-se possível tocá-lo. Algo que te toca e te faz sair da toca pela via do outro. Que toca pra longe o isolamento-nosso-de-cada-dia, que tantas vezes insiste em não haver, havendo.

p.s. O título é de Pessoa, em "Tabacaria", a quem devo "a caligrafia rápida desses versos". Disponível em http://arquivopessoa.net/textos/163

A foto é de uma das Puertas del Uruguay, que tanto me encantaram e sobre as quais o portal mágico um dia me trará um livro com esse título, ainda que eu tenha eu mesma que escrevê-lo.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Esgotamento


Hoje fui às compras. Comprei esgotamento. Assim, sem artigo definido ou indefinido. Puro em sua mistura de sentidos. Esgotamento remete à ideia sanitarista de canalizar restos, delineando seus limites mas assumindo seu direito de fluir. Nem sempre esse fluxo tem um conteúdo tratado, trabalhado, transformado. Do esforço de transformação brotam outros sentidos para esgotamento. Esgotamento enquanto escoamento, destinação. Esgotamento precedido por descarga, já que um não é sem o outro, mas onde a descarga não representa finalidade, apenas; sob pena de tornar-se fetiche. A descarga é princípio, não necessariamente início, de um percurso que não termina. Princípio que não é sem o que representa: a possibilidade de não largar restos a céu aberto virando sintomas. Sem trabalho, esgotamento vira oximoro e carrega em si seu contrário: o esgotamento da capacidade de transformação. Trabalhar o escoamento em forma e conteúdo possibilita aos sujeitos desviarem-se das determinações da natureza através de percursos por eles inventados, cujos efeitos remetem à construção de possíveis novos modos de vida.

Obs.: A foto é obra de uma colega que pratica a arte da engenharia com amor. A área do aglomerado linearmente contígua ao cemitério será transformada em uma via com esgotamento e drenagem. Bairro Cabana, BH, 30/10/2013.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Bolsa-sem-alça


Hoje fui às compras. Comprei uma bolsa-sem-alça. Não, não é o diminutivo de mala-sem-alça, mas um dispositivo pela emancipação. E nem mesmo é sem alça, pois tem três, e todas podem ser usadas - ou não. O que começou sendo feito em lona, agora existe também em couro, falso ou verdadeiro, à escolha. Assim, acompanha a roupa menos esportiva de quem trabalha e se diverte com elegância, num esquema 24x7, tudo-ao-mesmo-tempo-agora. Uma releitura que prova ser possível a qualquer um tornar-se melhor com o tempo. Mas como tudo o que é pós-moderno costuma ter pelo menos dois lados, o valor da sem-alça-três-alças reside não tanto no objeto em si, ou no que representa, mas no efeito que provoca: hands free. Agora as mãos são livres para tirar foto, usar o smartphone, retocar o make, concentrar-se no e-book, atravessar a rua com os kids e dar um super hug no love sem nocaute. (Só quem já levou trombada de bolsa sabe como atrapalha um abraço.) Ao contrário da velha bolsinha-de-catar-amora - em que nada cabe e ainda sequestra uma das mãos - o nome desse artefato em inglês é crossbody bag. De fato, representa bem uma cruzada. Uma cruzada que as mulheres empreenderam através do tempo. Pensar que, em cem anos, passaram de seres que sequer tinham o direito de votar a sujeitos que têm direito de escolha. O direito de não ser nem ter mala-sem-alça na vida. O direito de ter as mãos livres para escolher crescer.

sábado, 26 de outubro de 2013

Belo anjo


Hoje fui às compras. Comprei um céu de duas cores, que depois transformaram-se em outras duas. Comprei a sorte de pegar carona com a família, a alegria de sair do trabalho e passar na padaria tendo para quem levar o pão. A felicidade de trabalhar com o que gosta, e de fazer isso com entusiasmo. A tranquilidade de ter um anjo da guarda que me acorda quando esqueço de programar o despertador; o mesmo anjo que me ensinou a escovar os dentes e usar maquiagem, hábitos edificantes para uma vida inteira. Um anjo que sempre se interessou pelo que eu sentia e me ensinou a tornar a vida mais leve, mais livre. Um anjo que pregou em seu espelho uma frase de inesgotável sentido: "O segredo de viver bem é fazer do dever um prazer." Um sentido que explica, talvez, o meu prazer em arrumar a cama, estudar, trabalhar. Um anjo que soube pintar o céu com as melhores cores para que hoje eu pudesse comprá-lo no desvelar desse novo - e às vezes belo - horizonte. 

A foto mostra a cidade onde nasci, que não é Belo Horizonte.

Novo trabalho


Hoje fui às compras. Comprei um novo trabalho - e pelo preço de uma inscrição em concurso. Isso significa que comprei um lugar no mundo, incluindo um prédio recheado de pessoas interessantes no bairro em que vivi minha adolescência. "Tudo ido e lido e lindo, e vindo do vivido da minha adolescidade, idade de pedra e paz" diz Caetano; e eu endosso. Apesar de passar por esta esquina com frequência, nunca tinha reparado no aconchegante café instalado no térreo, algo que faz parecer estarmos hospedados em um agradável hotel familiar, apesar de não tão pequeno. Talvez como a própria Belo Horizonte pretendeu-se, um dia. A questão é cuidar para que ela não perca de todo essa graça, que é parte da personalidade de uma cidade criada no berço do modernismo e que, um século depois, insiste em não enterrá-lo, apesar de morto. É tempo de favorecer a organicidade que nos articula aos lugares a partir dos sentidos: o cheirar, o caminhar, o sentar-se, o prazer de fazer tudo isso sob as árvores em sombra e flor, o contato da pele de cada um - e das roupas e das solas dos sapatos - com os acabamentos e formas que compõem a pele do ambiente construído. O gosto do café com pão-de-queijo das esquinas, o olhar a paisagem urbana querendo mesmo compreendê-la; o olhar das pessoas que, olhando-a, vêm-se também a si mesmas - tanto individual quanto coletivamente - até construírem uma voz. Aprimorar essa capacidade de envolver-se pode tornar-nos menos analfabetos em urbanidade e sentimento de pertença. Lembro-me de ter lido sobre um garoto lisboeta que mostra ser mestre nessa arte. Indagado sobre de que parte da cidade ele é, afirma categórico: "De toda". Instigar essa eloquência sinédoque parece ser o efeito invisível mais importante desse novo trabalho em que mergulho.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

"Acrilírico"


Hoje fui às compras. Comprei uma imagem do que viam, antes, meus olhos. Só para contrastar com as cores e as minúcias que vejo agora, de longe. Abelhas em festa na amoreira em flor. Lagarto estendido ao sol, olhos esbugalhados, cabeça que vai e vem, e a língua também. Coelhos que sabem que são vistos, e tremem focinhos, fingem falar. Parece que ganhei uma lupa trabalhando dentro da minha cabeça. Ou virei Alice, fiquei pequena e estou tão nas coisas quanto elas em mim. Tenho nos olhos um produto do progresso da ciência e da técnica e da arte de Raíssa. Um artifício que rememora o esforço e reforça o que há de mais humano no homem: sua capacidade de pasmar-se. Agora passo horas só olhando, olhando. Quem quiser ter olho grande, tenha, mas os meus são acrilíricos; dão um nó no tempo, e só enxergam poesia e amor.

p.s. A imagem primaveril é do pintor inglês J.W.Waterhouse.
p.s. As aspas do título fazem-me devê-lo a Caetano, que inventou esta palavra em texto esplêndido de 1969. Pode-se ter acesso a ele em http://www.radiobatuta.com.br/Episodes/view/371.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Dia de Madame



Hoje fui às compras. Comprei um dia de madame. Acordar e esperar para ver se acordou mesmo. Decidir levantar podendo mudar de ideia. Encontrar o café pronto e degustá-lo com baixas calorias (ou quase...). Passar as capas dos estofados que o marido lavou ontem porque ela ainda não pode pegar peso. Sentir o prazer do cheiro de roupa limpa e do tecido desenrugando. Colocá-las no lugar e admirar o resultado por minutos sem conta. Ligar para ele só para ouvir a voz e rir um tanto. Conferir e-mails. Enviar documento solicitado. Buscar na horta um pouco de manjericão para o risoto do almoço. Preparar com carinho picando os pimentões bem miúdos. Degustar a nova receita e depois curtir um pouco da sobremesa que restou do domingo. E com café passadinho na hora. A essa altura, descobrir que os filhotes virão almoçar. Preparar rapidamente um strogonoff, arroz branco e alegria para sentarem-se todos à mesa. Resistir à tentação de comer sobremesa de novo com eles. Banho relaxante. Shampoo cheiroso. Máscara no rosto; exfoliante. Depois outra; anti-idade. Sentir o prazer do cabelo limpo e da pele desenrugando. Ideia de ir ao supermercado no meio da tarde. Guardar compras sentindo prazer de armário cheio. Deixar a verdura lavada e pronta para as saladas que virão. A madame não sabe o que terá para comprar amanhã. Mas se for um período longo de trabalho pesado - e ela nunca resiste a isso - pelo menos terá descansado hoje. 


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Tarde em espera


Hoje fui às compras. Comprei um Turner na minha janela. Enquanto espero, seco os cabelos, sento-me numa cadeira. "Em que hei de pensar?", diria Fernando Pessoa*. Observo a tarde que esmaece. Suas cores, nem sei de tão belas. O céu parece convidar a olhar. Hoje posso ver cada detalhe das nuvens que não se incomodam com o devagar do vento. Agora vejo as figuras que formam, pois há muito só as imaginava. Nem sei mais quanto tempo já faz. Seja por causa dos olhos ou do tempo, ou da falta deles. Hoje não me faltam mais. Mas anseio pela falta de tempo. Não gosto do efeito que sua sobra faz. Mas quando o tempo sobra, razão há. É só procurar, principalmente no futuro, a explicação. Mas não vivemos mais de explicações. Nem a ciência, quase. A questão é solucionar o caso. E isso, hoje, significa aprender a esperar. Consolando-me, parafraseio uma citação que o Marcelo Jabour faz em seu poema "Lascas", e digo: quando se está pronto para agir, difícil é fechar o olhos e sonhar.

*No poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A matemática da faxina



Hoje fui às compras. Comprei um exercício de matemática em forma de faxina. O enunciado diz assim:

Simplificar as contas
os escritos
os guardados
os não-ditos e os não-feitos.
Tirar o máximo divisor comum
de todas as histórias
cruzar as referências,
descobrir por cartas e fotos
de quem chegamos, ou não, a conhecer 
(o que, muitas vezes, dá no mesmo...)
como a vida lhes parecia,
ou como queriam que lhes parecesse.
Tirar o mínimo múltiplo comum
de todas as virtudes
e de todos os defeitos que herdamos
(por escolha ou por destino, quem sabe?)
e aprender que tudo isso mais se mescla que se isola.
Fatorar todas as gavetas até descobrir o resto da divisão:
essa coisa de descarregar quase tudo 
na leitura, na escrita, na fotografia
também é herança de família.
O resultado dessa conta é sempre o tempo
não o tempo que ganhamos ou perdemos
mas como o aproveitamos.

p.s. Poema de Laurindo Rebello que meu avô copiou em seu caderno. Abril de 1921.

domingo, 21 de julho de 2013

Mind the gap


Hoje fui às compras. Comprei um lugar. Um lugar que é um não-lugar, pois não me oferece qualquer identidade. Um lugar que não me permite ficar, apenas passar e desaparecer. É essa dinâmica que justifica sua existência. Um desaparecer que se repete, novo, a cada aparecer.

Há lugares que nos conduzem facilmente a esse não-lugar. Lugares que não estão no tempo-espaço onde se mostram, pois constituem apenas uma expressão suavemente concreta do presente. Só ficamos ali por um instante, e esse não-ficar pode fazer dele o lugar-não-lugar do pensamento.

Não se fica porque não se buscam identidades. Identidades congelam o pensar. São súditas da ordem. Pensar vai na contra-mão disso. Pensar é estar de passagem. É questionar a ordem, não sem maravilhar-se pelo fato dela existir, imaginando o que a fez possível, procurando em sua materialidade traços do movimento que a formou, imaginando a partir de seus registros o que supostamente a fez estabelecer-se e como isso poderia ter sido de outra forma.

É possível sentir o potencial desse pensamento circulando no ambiente construído, especialmente nas cidades antigas, nos edifícios históricos, como esse da foto, cujas fundações remontam ao século I a.C. No mesmo lugar, ele repetidas vezes renasce, nunca o mesmo.  Essa falta-de-lugar no tempo é característica tornada visível pela arquitetura que faz o edifício pertencer a muitos tempos e, contudo, a nenhum especialmente. 

Já o sujeito almeja a falta-de-lugar no espaço. Do contrário, ele seria árvore. Ele almeja o espaço criado pela falta-de-espaço, o espaço-entre, o intervalo de que é feito o pensamento; matéria-prima da ação que o leva longe. Esse espaço-entre é o espaço do desejo, onde ele pode cultivar sua liberdade, colher suas escolhas e, outra vez, partir.


p.s. Atualmente funciona nesse edifício o Museu Machado de Castro. Coimbra, Portugal.

domingo, 14 de julho de 2013

O Bom-Bim-Bom do Brasil


Hoje fui às compras. Comprei o Brasil de volta. Mas só o que há de bom nele. O de ruim dei de esmola aos políticos corruptos que já estavam de partida. Eles levaram muita coisa, é verdade, principalmente a Própria Incompetência (para o que não se referisse a encher os próprios bolsos). Mas não é só ela que vai cuidar deles. Fiz questão que levassem também a Injustiça, que prometeu auxiliá-los em desavenças futuras. Fiquei tranquila porque sei que ela é como a irmã que aqui ficou, "tarda mas não falha". Gastaram os últimos quinhões de felicidade que lhes restavam pensando terem levado a melhor, já que a irmã que ficou é cega. Dignos de Pena. Aliás essa também foi, porque aqui ninguém mais vai ter pena de ninguém. Levaram a Ignorância, que não saberia mesmo viver longe deles. Cá entre nós, acho que é recíproco. Vendo-a ir, o Desemprego também foi, pois ainda é um bebê de peito. Aliás, lá ele vai crescer forte e implacável na companhia de quem o criou, o Capital. Aliás este, meio estabanado, quando voltou para buscar a senhora sua mãe - a D. Ganância - esqueceu a carteira e todo o seu dinheiro para trás. Mas os políticos corruptos nem viram isso, entretidos que estavam em ajudar o Capital a levar sua mãe nos braços. E como é pesada essa mala sem alça! Com isso, levaram também todo o nosso estoque de Angústia e Aflição. Embalei uma a uma em travesseirinhos, assim eles podem não-dormir no aconchego de seus próprios desertos morais. Mas chega de falar do que se foi. Agora é curtir o que ficou e cuidar do que faremos a partir disso.


Pra começar, ficou a arte. Mas não arte vazia que se quer vendida, e só. Ficou a Arte do Cotidiano, de driblar a bola entre o tempo de um pé e outro que o olho não vê e a trave ajeita; a arte de trabalhar com prazer e dor - sim a dor ficou, pois não há esforço nem progresso sem a dor leve de quem está a crescer. Mas é dor com letra minúscula, dorzinha feliz de um país capaz de se virar em duplo twist carpado para viver e sorrir. Ficou a arte de esforçar-se para criar múltiplos e diversos entendimentos. A arte de estudar, estudar até mesclar a voz ao violão de modo tão único que recebe nome próprio: Bossa Nova. A arte de fazer o novo e a bossa, sem dar as costas ao que é velho quando é de valor. Não um valor determinado pela "ordem estabelecida", mas um valor produzido pelos neurônios que trabalham em um corpo que insiste em existir entre e com os outros, nesse mundo concreto de alma verde e amarela que é o Brasil.

Precisão


Hoje fui às compras. Comprei a precisão e seu duplo entendimento:

  • é preciso recusar as facilidades de um olhar monofocal e também as facilidades de um olhar plurifocal, mas desconexo;
  • é preciso erguer-se no ponto em que esses olhares se cruzam formando outro olhar que navega de si para o mundo e para o outro, numa distância em constante negociação, e nunca nula. 

O navio desse olhar estabiliza-se no mesmo meio que lhe permite deslocar-se. De sua própria estrutura depende vencer a resistência do meio na produção de seu deslocamento. Essa resistência é feita da recusa, que precisa ser precisa para ser preciosa. De longe, ele parece parado. É preciso ser resistente para erguer-se em movimento no preciso ponto de sua preciosa presença. 

p.s. Navegando no Tâmisa. Em primeiro plano, a Ponte do Milênio (Millenium Bridge). Londres, setembro de 2008.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A espera



Hoje fui às compras. Comprei a espera. Espera só existe uma; sua matéria prima é o tempo. Por isso ela é monstruosa. Mas, sim, há vários modelos disponíveis. Escolhi não o mais complexo, mas um que demanda alguns acessórios. Acessórios são mais que adornos, pois ornam e também têm função. São os acessórios que afastam a espera da sua crueza e da sua crueldade.

O primeiro deles - e indispensável - é o que a permite parecer suspensa no tempo. Você, que está esperando, parece sentir a espera passar sob sua existência enquanto se suspende em outra esfera. Fica tudo virtual, inclusive você. O que parece ser a espera é o próprio tempo, passando. O que mais próximo que chega a isso no mundo material é a rede. Aquela, que prendemos entre dois pilares, e restamos pendurados, suspensos sobre o tempo que corre abaixo, lentamente. Tanto que dá preguiça só de ver. É quase um Facebook. Mas há uma versão intermediária entre o material e o imaterial: é João Gilberto com sua voz suspensa entre as cordas do violão. Esse, dá vontade de vir ver.

O segundo acessório é um aparelho que torna a espera visível. Visível não como uma foto ou um filme, mas como um fenômeno. Um fenômeno interno ao corpo e ao que se instala entre a percepção e a consciência. Assim somos capazes de ver que não temos fome quando temos, que nos entusiasmamos e nos desentusiasmamos com a intensidade e a efemeridade de uma faísca, que sofremos de angústia como uma chama. Sabemos que vai-se apagar um dia, e que em seu lugar deixará uma brasa mais eficiente que ela mesma. Mas como dói. Vale dizer que esse acessório, sem o anterior, não faz o menor sentido pois só aumenta a aflição. Mas se estivermos suspensos vendo o fenômeno passar como externo, aí estamos vendo o carnaval da arquibancada. Sentimos a vibração, balançamos o corpo, mas a alma não ferve a derreter-se.

Outro acessório é um transferidor de espera. Ele nada mais faz que alterar seu ângulo de atuação. De aguda torna-se obtusa. De obtusa torna-se oclusa e, mais um pouco, enevoada. A quina do ângulo some e é necessário quase um processo cirúrgico para tirar a espera desse lugar. Mas por que comprar um acessório que esconde a própria coisa? Eu já vi querer esconder-se a si mesmo do monstro para poder derrotá-lo à espreita, mas não esconder o monstro para poder passar assoviando, como se ele não estivesse lá. É, mas a única coisa que acaba com a espera é aquilo de que ela mesma é feita. Credo! Falando assim parece até que comprei o próprio capitalismo...

A questão é que esse acessório vem grátis com a compra dos outros dois. É claro que quando algo vem de graça não carrega só virtudes. O monstro da espera torna-se invisível mas, quando esse acessório está ativo, anula a ação dos outros. Seria ótimo mesmo poder ficar sobre a rede, vendo nada passar por baixo. Seria só eu e a rede, sem a noção do que se esvai potencialmente por entre os dedos. Sem sequer a sensação da angústia como fenômeno visível, pois seu espectro estaria anulado pelo terceiro acessório. Mas não há essa opção. Brinquedo chato. Canso e vou dormir com a esperança de não sonhar com isso.

p.s A foto é para lembrar que ainda restam coisas que passam rápido no mundo, mesmo estando lá todos os dias e sendo invisíveis, às vezes.

sábado, 6 de julho de 2013

Comprei um romance


Hoje fui às compras. Comprei um romance. Ele conta a história de um casal que foi vizinho de berço no início dos anos 80 no Brasil. Inseparáveis por toda a infância e juventude, veem-se, três décadas depois, adultos e casados. Como também seria com dois sujeitos quaisquer, suas compatibilidades aninham-se nas bordas de suas incompatibilidades. As faltas de um surtem efeito no outro, e seguem pela vida sem saber imaginá-la sem o desejo inesgotável que isso lhes desperta.

Porém, o fruto de seus desentendimentos velados tornam-se visíveis pela carência de qualidade que marca sua vida cotidiana, seu espaço, seu tempo. Ele, viciado em novidades, a cada dia aparece de roupa nova e pensa, assim, reinventar-se. Já ela, usa as mesmas roupas desde antes-de-Cristo. E esse aparente desleixo resguarda, sim, seu lado sóbrio e sedutor. Ao contrário de sua roupagem, a relação politicamente civilizada que estabelecem raramente vai além das aparências. O marido, a certa altura, não consegue mais disfarçar seu comportamento sádico, dominador, egocêntrico. Ele não poderia mesmo ter encontrado esposa mais conveniente que essa, cujos traços masoquistas tornam-se mais evidentes a cada investida sua.

Ele a conheceu num dia de calor. Havia muita gente na rua, mas sua beleza e seu frescor transmitiram-lhe imediatamente a certeza de que através dela conseguiria a legitimidade necessária para realizar seus planos de futuro. Ao longo de todos esses anos, a forte presença dessa mulher disfarçava sua sutil vulnerabilidade. Não eram infrequentes os episódios em que apanhava feio às escondidas, mostrando-se ainda assim disposta a oferecer a outra face na esperança de fazer ver, nesse gesto, seu valor. Esse comportamento neurótico foi seu recurso de sobrevivência por muitos anos; ela fugia à realidade. Recebia cada golpe contra sua dignidade com uma resignação que não é sem algum prazer histérico, próprio da demanda, tão sua, de ser desejada, de ter reconhecida a falta que pode fazer sua ausência. Ela sabe que, sem ela, ele não consegue sobreviver.

De sua parte, o marido reina absoluto em sua psicose, cuja tática não é a fuga da realidade, como na neurose dela, mas a criação de realidades paralelas em que pouco a pouco ele se aliena das realidades concretas do mundo vivido. As questões carentes de atenção têm seus sintomas disfarçados; ele rasura os boletins dos filhos e age como se tirassem boas notas, amontoa-os em um quarto que pinta de azul, quando deveria possibilitar que construíssem seus próprios espaços. Ele dá toda a liberdade aos filhos, mas só porque acredita que são incapazes de sair da mesmice com que os alimenta. Esbalda-se na criação de fantasias que sua mulher não aprova, mas cala-se, enfraquecendo a cada vez a voz. Fazendo vista grossa assim às falhas do marido, ela sequer consegue poupar os filhos dos avanços obsessivos dessa psicose e de seus efeitos. Mas acontece que os filhos um dia começam a enxergar a ambos atrás das máscaras.

Entendem que a doença do pai excede os limites do tolerável e agrava-se pela neurose da mãe. Vêm com clareza que essa situação precisa ser contida, pois começa a comprometer os que vivem sob a égide desse casamento. Sua patologia, visível na própria casa que sobrevive à deriva, faz também com que os filhos pareçam órfãos, divididos entre a lealdade ao amor pela mãe e a própria obrigação que isso gera. Pelo pai, impera uma dependência de que não sabem ainda se desligar. Mas dentro dessa estrutura mesma começam a brotar transformações. Os filhos tomam consciência de que, se não agirem, as patologias dos pais e de seu relacionamento significará a ruína de todos.

Decidem encarar a neurose da mãe, procurando ajudá-la a tornar-se mais forte não só contra os avanços psicóticos do pai, mas também contra as frustrações inerentes à própria realidade. Sobre isso decidem aplicar regras, novas e antigas, vigiando-lhes incansavelmente o cumprimento. Eles reconhecem que essa luta é inextinguível: os pais nunca vão se separar, mas sempre correrão o risco de se perderem na doença um do outro. A estratégia é nunca abandoná-los, mas tomar para si a tarefa de cuidar deles, da casa e das relações que ali têm lugar. Percebem a casa como um ambiente que poderá ajudá-los a tornar seu desenvolvimento individual e coletivo mais independente desse conflito, apesar de sempre estarem sujeitos a ser por ele condicionados. Esses filhos poderiam ter-se tornado neuróticos como a mãe, e quase o fizeram, de fato. Quase deram as costas aos conflitos latentes que nunca lhes davam folga. Mas escaparam dessa fuga pela via do humor. Vendo o pai dominar a mãe, faziam piada, faziam festa, e jamais deixaram de sonhar enquanto dormiam. Foi assim que os problemas acederam à sua consciência.

Com isso seus sonhos estão virando planos. Entraram para o campo da ação, fazendo com que criem modos de se organizarem para vigiar o pai, ajudar a mãe a se fortalecer, e ainda tocar sua própria vida adiante, desvencilhando-se das armadilhas morais e psíquicas que, a cada instante, podem fazê-los voltar para o lugar de onde partiram.

Bom, isso é até onde foi minha leitura até agora. Mas é um livro tão cheio de detalhes que só dá para relatar assim, por alto, a história. Os personagens são muitos, principalmente os filhos, e não sou muito boa com nomes. Mas lembro que o pai chama-se Neoliberalismo e a mãe, Democracia.

p.s. A foto é de uma das casas deles, onde o domínio do pai é gritante.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Reconhecimento


Ontem não fui às compras. A ideia era providenciar um presente para uma amiga muito querida que fazia aniversário. Não saberia o que comprar, então decidi produzir algo; a que dei o nome de Reconhecimento. Evidentemente ela não precisa disso, mas pode ser tentador colecionar mimos que não ocupem espaço.

Não é a primeira vez que faço isso em relação a ela. Nosso raggionare amichevole já foi reconhecido em outro instrumento de troca que produzimos juntas. Mas hoje vamos além. Reconhecer a importância do que a existência e presença de alguém constrói em nós pode ser uma tarefa extremamente fácil e agradável, mas cuja exposição não  dispensa alguma clareza, nem que seja a meramente cronológica.

Nossas primeiras trocas aconteceram quanto ela me ofereceu a mão depois de uma queda imensa que sofri. Aos poucos, ajudou-me a reconstruir o chão que sob meus pés parecia insistentemente esvair-se. Inicialmente construímos estruturas de suporte imediato e, guiadas por sua cautela, paciência e perseverança, pudemos paulatinamente erguer novas estruturas sobre aquelas parcialmente destruídas e sobre um solo mais firme que aos poucos fazíamos existir.

Erguido o corpo, capaz então de caminhar com suas próprias pernas, era necessário fazer com que a cabeça também se erguesse tornando-se passível de produzir alguma dignidade. Esse é, sim, um trabalho que nunca termina, mas que em algum momento precisa começar. Isso também não tem como acontecer sem ajuda de alguém reconhecidamente esclarecido a respeito de todo esse processo, alguém cuja capacidade de lidar com as limitações e resistências do outro ultrapassem o talento, a habilidade, a dedicação, de uma maneira que eu não saberia converter em palavras.

Consigo apenas dizer que o solo firme que construímos tem se oferecido como lugar para uma pista de decolagem, onde a cabeça erguida começa a querer enxergar e agir para além do horizonte visível. A construção dessas estruturas a um só tempo firmes e flexíveis - que você favorece a cada incursão - ajudam a produzir a coragem de alçar vôos não-lineares, topológicos; que não se abstêm do contato nem com a multiplicidade da própria subjetividade, nem com a das realidades em que nos inserimos ou almejamos produzir, nem com o que pode haver nos interstícios desses trajetos. Não se trata apenas do reconhecimento da ação e do terreno, mas da disposição que se amplia e se fortalece ao procurar re-conhecê-los.

domingo, 23 de junho de 2013

Todo estádio tem, pelo menos, dois lados: o de dentro e o de fora, o norte e o sul, o de fato e o de direito, o real, o simbólico, o imaginário...


Ontem fui às compras. Comprei fatos. Fatos e enganos. Procurando viver os dois lados da mesma moeda, fomos ao Mineirão ver o jogo Japão x México, da Copa das Confederações. Não, não compramos ingressos, eles nos foram dados de graça. Devido ao baixo quorum do jogo anterior em Belo Horizonte, o estádio sob custódia da FIFA só teve a lotação de ontem, de 52690 pessoas, depois de tomada a iniciativa de distribuir ingressos para um seleto público. Mas a verdadeira falta de graça estava só começando.

Depois de irmos à manifestação na Praça Sete de Setembro, no centro de Belo Horizonte, pegamos o ônibus disponibilizado pela prefeitura e rumamos para a região da Pampulha, onde fica esse estádio, recentemente reformado para os eventos esportivos que se anunciam. Para tornar possível uma logística razoavelmente aceitável, impressionou-nos a quantidade de pessoal contratado, seja para organizar as filas, recolher os ingressos, verificar se todos estavam sentados e prontos para partir. Ficamos imaginando se todos esses recursos - financeiros e humanos - tivessem sido investidos em um sistema de transporte que pudesse se perpetuar, através do cotidiano dos trabalhadores, para muito além das poucas semanas em torno de campeonatos esportivos.

A quantidade de policiais posicionados para resguardar a mínima parcela de gente que se dirigia ao estádio era proporcional à sua postura solícita e protetora do lazer desses premiados civis. Premiados com a alienação, diga-se de passagem. Pois nem dali, e tampouco de dentro do estádio, era possível ver o que ocorria na ala oposta do Mineirão, onde esse mesmo número de pessoas juntava-se em protesto, como também nós o fazíamos, alguns minutos antes, na Praça 7.

De dentro do estádio ninguém via nem ouvia nada. O monótono jogo transcorria sem jogadas ameaçadoras e, enquanto os torcedores se enfileiravam para pagar 9 reais por uma Brahma e 6 por uma Coca-cola, do lado de fora, helicópteros, bombas de efeito moral, cavalarias e tropas de choque ameaçavam e agrediam os que protestavam diante de uma dessas monumentais Embaixadas da FIFA no Brasil.

Mas entre os fatos que trouxemos para casa ontem, há uma relíquia de que felizmente ainda não nos abstivemos: a Declaração Universal de 10/12/1948. Proclamando que "os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão", ela clama para que tenhamos "condições de vida em uma liberdade mais ampla". Os policiais que protegiam a ala sul do Mineirão, onde entravam os "turistas", pareciam saber que essa regra é clara, mas os da ala norte não pareciam dar-se conta de que também eles são pessoas "dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade." Vale lembrar que muitos soldados nazistas também não tiveram discernimento para dizer "não" às ordens que recebiam. Que tipo de seres humanos são esses, afinal?

p.s. O outro lado da visão pitoresca do Mineirão, que a foto acima ilustra, pode ser vista no vídeo que editamos em: http://youtu.be/2W-74fYH7Cs




quarta-feira, 19 de junho de 2013

Ponto, parágrafo.


Hoje fui às compras. Esbaldei-me: comprei metáforas. Para bom entendedor, um pingo é letra, e queremos por os pingos nos is e um ponto final nos gestos vazios. Já não suportamos mais essa ideologia liberal de "vitimância", que reduz a política a um programa de meramente adiar o pior fazendo o mínimo, renunciando ao que possa de fato favorecer transformações em nossas realidades. Nosso ponto não é, contudo, um ponto final, é um "Ponto, parágrafo."

Sendo já bem conhecida a inépcia dos psicóticos para lidar com metáforas, facilitemos a compreensão disso para aqueles que constroem realidades paralelas e nelas se refugiam criando procedimentos - burocráticos - que os ajudam a evitar o que existe. Precisamos de cura é para vocês, psicóticos no poder, que só escutam o que querem, erram o alvo, trocam os pés pelas mãos e, quando são encurralados, ou fogem ou suicidam-se.


"20 centavos" não correspondem apenas ao aumento na tarifa de ônibus, mas ao que resta da nossa paciência. Aprendam rápido a fazê-los render, ou poderão vê-los transformados em "Tolerância zero". Não suportamos mais as humilhações a que nos deixamos submeter por tanto tempo. O medo do que há de vir não nos impede mais de enfrentar um cinismo que já dura quinhentos anos. Nossas escolas precisam nos capacitar a fazer escolhas, a fortaceler a produção crítica em forma, conteúdo e presença. Sem esse engajamento, não há desenvolvimento. O desenvolvimento que queremos não é, como vocês adorariam que fosse, o contrário de envolvimento. O tempo de "eles dizendo para nós como queremos viver" acabou. Ponto, parágrafo. Queremos uma pele firme e flexível que nos envolva individual e coletivamente, que nos favoreça o crescimento intelectual e produtivo no exercício de nossos direitos e no cumprimento de nossos deveres como seres humanos e cidadãos. Não há atalho para esse processo. Queremos provocar o terror, não a violência. Queremos que tenham medo de perderem suas cabeças, como nós temos de perder a vida por "20 centavos" todos os dias. E que vivam com isso. E que trabalhem apesar disso. E que trabalhem bem. Sim, viver implica trabalho, inquietação.  Uma inquietação que combate a petrificação, pois a inquietação é a própria vida. Sim, Zizek, vivemos em tempos de por pontos finais naquilo com que não queremos mais viver. Em tempos a um só tempo interessantes e difíceis, tempos de múltiplos e diversos novos inícios. Tempos plurais para os quais não queremos cura. E quanto à velha escolha entre a bolsa e a vida; sim, escolhemos a vida e a escolha. Ponto, parágrafo.

p.s A referência a Slavoj Zizek remete ao seu livro "Living in the end times", traduzido no Brasil como "Vivendo no fim dos tempos". Ora, não estamos vivendo no fim dos tempos, mas sim, no tempo dos fins. Acho que é isso o que ele quer dizer.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Oximoro

Hoje fui às compras. Comprei uma biblioteca-anti-biblioteca. Claro que não se chama assim. Li tudo o que consegui sobre o equipamento antes, mas nada falava que sua característica mais sombria era esse oximoro que seu nome mostra, mas não evidencia. Um nome que sugere exatamente o contrário do que parece dizer.

Podemos consultar o dicionário sem esforço ao longo da leitura, é verdade, e mesmo uma enciclopédia on-line, mas não podemos tirar xerox de uma página para rabiscar comentários com nossa própria letra. Não pagamos frete de nada, mas não podemos inserir nele uma de nossas relíquias celulósicas que queremos ler em condições adversas de iluminação; situação para a qual esse equipamento mostra-se realmente inigualável.   

Podemos ter acesso a um conteúdo gratuito, é verdade, e isso pode ser suficiente para uma vida inteira. Mas ache um livro que pode interessar a mais alguém além de você, e poderá compartilhar fragmentos nas redes virtuais, mas não emprestá-lo, pois isso significaria emprestar sua biblioteca inteira de uma vez só. Ora, ninguém quer isso! Nem você, nem o outro! Mas aquela alegria de dizer ao colega "Tenho um livro que vai te interessar, vou trazê-lo para você!" ou fazer simplesmente uma surpresa com algo que você acha que vai agradar; isso terminou. Para lê-lo, ele terá que comprá-lo. A biblioteca de quase 500 volumes que carrego no bolso do casaco não pode ser emprestada para ninguém. O máximo que posso fazer é propaganda não remunerada de conteúdos que acumulo só para mim.


p.s. O oximoro é uma figura de linguagem que torna vizinhas palavras que se opõem, como "infiel fidelidade", por exemplo. A inquietante estranheza da modernidade não poupa nem esses redutos que ainda guardavam algo da importância da reunião, do diálogo e da alegria of kindly sharing.

domingo, 26 de maio de 2013

E-map-book


Hoje fui às compras. Comprei um equipamento que ainda não existe, a não ser nos meus sonhos. Ele funciona assim: é um livro eletrônico, mas tem hiperlinks com os mapas digitais. Do mesmo modo que no e-book clicamos em uma palavra e a consultamos no dicionário, nesse e-map-book clicamos no nome de uma rua e podemos vê-la no mapa através dos tempos. Isso seria feito por meio de fotos, ilustrações, vídeos daquela rua tanto da atualidade quanto da época do texto que estamos lendo, e que tenham sido adicionadas por usuários voluntários (uma aplicação bem simples para popularizar o Volunteered Geographic Information, sem deixar de ligá-lo à cultura). Desse modo, podemos deixar geocatches para serem achados no espaço e no tempo! Assim, quando Peter Ackroyd conta-nos sobre a vida de Thomas Morus, podemos visitar a Milk Street, onde ele nasceu, em Londres, no próprio século XV, no século XIX, também mencionado por Ackroyd, ou na atualidade. Mas esse e-map-book que comprei vai além disso. Como teriam sido georeferenciadas as ruas citadas em todos os livros, poderíamos fazer a pesquisa inversa e saber que autores, em que livros, fizeram menção a uma rua pela qual nos encantamos ou estamos interessados de algum modo. Adoro comprar equipamentos que ainda não existem. Quando eu tinha 14 anos, comprei um que me permitia trilhar o caminho preferencial em relação às condições da pavimentação, engarrafamentos (que ainda não eram um problema do tamanho que são hoje), mão de direção e menor distância. Na verdade, esse funcionava melhor que os GPS disponíveis atualmente no mercado. Mas é claro, pois a fantasia não tem que lidar com as dificuldades da realidade, a alimentação e atualização de banco de dados na imaginação é sempre automática... e o cartão de crédito criativo tem fartura, mas não fatura...

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Episódio 4



Hoje fui às compras. Comprei uma bolsa. Uma bolsa daquelas onde carregar sua energia e conduzir seus sonhos já em fase de realização. Uma bolsa cheia de compartimentos. Ali você carrega oportunidades secundárias que sempre aparecem e precisam ficar à mão. Inclusive bolsilhos discretos, onde guardar seu Talento preferido para a hora que bater aquela fome de conhecimento. Uma bolsa leve, mas robusta. Fácil de carregar, mas difícil de encontrar. E mesmo depois que a encontra você ainda tem que consegui-la. A moeda com que se pode comprá-la passa longe das verdinhas. Trata-se da moeda mais valorizada do mundo, pelo menos no planeta em que vivo (atualmente meio isolado e deserto, é verdade). É uma moeda antiga e ainda cunhada segundo os mesmos métodos desde sempre: chama-se mérito. Seus investimentos são vários, mas o sistema de acumulação é principalmente a poupança. Porém, cada retirada que você faz, só acrescenta. É a moeda dos sonhos? Em parte, pois é a moeda com o mais alto índice de realidade. Só que seus primeiros centavos são, sim, fabricados com sonhos.

Sobre a foto, um talento especial do marido, que sabe sacar a máquina no momento certo, único, inesquecível e prolongá-lo ad eternum.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Episódio 3


Hoje fui às compras. Mas nada comprei. Ganhei aquilo que de precisava para o momento. Veio com a leveza e transparência próprias das coisas mais necessárias. O que ganhei foi um convite ao pensamento. Veio na forma de e-mail, por isso tão rápido e preciso. Tá aí outra coisa que não se compra: um e-mail. Pode-se comprar uma conta de e-mail, isso sim; mas não a vontade, em alguém, de escrever-lhe algo. Esse ato é a própria demonstração de uma articulação que ultrapassa a mera conexão digital. 

-----Mensagem original-----
De: Meu Tio (afinal, não é só o sobrinho do Jacques Tati que tem um "Mon Oncle" !)
Enviada em: segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013 16:28
Para: seis pessoas além de mim
Assunto: Provérbio

Somos o que fazemos, sobretudo o que fazemos para mudarmos o que somos. Galiano
----- Fim da mensagem -----

Ao que respondi-lhe, sem economia, mas com esforço de organização; outra coisa que não se compra. Aliás, como todo esforço, né?

Tio,

Concordo com tudo, menos com o verbo "mudar". Dizem os franceses que quando tudo muda, nada muda: "Quand tout change, rien ne change".

Prefiro o verbo "transformar". Pois não se pode menosprezar a forma, reduzindo-a a uma mera forma; subestimando a ideia de se alterar algo respeitando ainda os vestígios do que foi, do que o originou. Acho que Galiano concordaria com o meu argumento. Afinal, a moda não é sem forma, e revisitações elaboradas a partir de um novo olhar parecem mesmo caracterizá-la, não é?

Esse respeito de que falo não remete à mera preservação de formas e conteúdos, e muito menos de um significado que lhe é atribuído heteronomamente, mas à preservação de sua capacidade de produzir efeito, efeito na forma de um querer que ultrapassa o relacionamento com a coisa em si, promovendo um relacionar-se com o contexto em que se insere aquilo que foi transformado.

Freud entendia nossa capacidade de transformação - que Nietzsche atribuía à inventividade, e provavelmente influenciou Freud nesse entendimento - como efeito de nossas relações com os deslocamentos e condensações mentais de percepções, sentimentos e informações que, na forma de pensamento e motivados pela crítica, conduz-nos à ação de transformar a realidade.

Alberti - um arquiteto da segunda fase do Renascimento italiano com quem tenho instigantes relações intelectuais bem dialógicas, por assim dizer - chamava o campo onde elas acontecem de "canteiro mental". Freud o organizava em pelo menos três esferas: "Consciente, Pré-consciente, Inconsciente". De todo modo, parece tratar-se realmente de um espaço de trabalho pesado, ainda que invisível para nós. Nesse sentido, há algo mais contemporâneo que essa estrutura de funcionamento? Lidamos o dia todo com máquinas e desconhecemos quase absolutamente seus mecanismos internos. Parece que nossos mecanismos têm mesmo um quê de "maquínicos", como dizia Guattari, apesar de não os querermos ´mecanizados´. Essa confusão de termos em ato, de fato, não convém.

Em decorrência dessas afirmações, prefiro transformar esse provérbio que você me ofereceu em uma elaboração não tão sintética:

Percebemo-nos pelo que fazemos, incluindo o que fazemos para transformarmos nós mesmos e os modos como nos articulamos com a realidade - que nos condiciona - e com a alteridade - que nos lança a esse desafiador processo de funcionamento e fabricação ininterruptos, apesar de plenos de vazios. Um fazer-se que não prescinde de alguma reedição; motivada, talvez, por esses mesmos e inevitáveis vazios.

Na linguagem dos gregos, essa idéia é representada pela palavra "cibernética"; que expressa o princípio da retroalimentação (que possibilita aos organismos vivos resignificarem suas ações por meio da interpretação e avaliação de respostas anteriormente dadas). Parece-me que Norbert Wiener - inventor, em 1941, do termo "cybernetics" a partir do grego "kubernetes", que, aliás, significa piloto (aquele que tem que tomar decisões a partir dos condicionantes da realidade tal como se lhe parece) - entendia a cibernética como o mecanismo segundo o qual se realiza o equilíbrio flutuante que caracteriza o funcionamento dos sistemas dinâmicos.

O interessante é que a elaboração de Freud acerca do conceito de "Eu" - aquele que para fortalecer-se precisa tornar-se mais independente do Super-Eu, não sem apropriar-se de novas parcelas de sua capacidade inventiva, por assim dizer - sempre me remete à figura do Prático que, munido de seu barquinho minúsculo, conta menos com ele que com sua habilidade aprendida e aprimorada para lidar com os condicionantes 
  • geográficos, do lugar onde se instalou o porto 
  • meteorológicos 
  • das diferenças de pressão que causam os ventos, mas também daquelas
  • do capitalismo que, agravado pela globalização, quer os navios atracados - o quanto antes - para serem descarregados (um termo controverso, aliás, e que deturpa o entendimento que algumas pessoas têm de algumas das idéias de Freud, a meu ver)
  • os fluxos da maré 
  • os próprios mal-estares a que se encontra exposto por estar vivo. 

Esses mal-estares frequentemente originam-se de suas relações 
  • com o próprio corpo, 
  • com os outros e 
  • com a máquina onde trabalha, cujo estado de conservação geralmente deixa a desejar. 
Ah, essa última categoria também é, a exemplo das duas primeiras, tida como fonte de dor e frustração na literatura de Freud, mas ele foi menos específico nesse quesito, e a chamou de "mundo externo".

Quando um organismo vivo, como o Prático em seu porto e a partir de seu barco, responde de forma inédita ao conjunto de estímulos a que está exposto, pratica um complexo de princípios, que incluem: 

  • a capacidade de mais regularmente equilibrar-se no contexto em que se insere 
  • a habilidade de criar novas interpretações para as mesmas questões, novas respostas e, por que não?, novas questões. 

Responder questões não é mais que deslocá-las para um outro ponto onde serão novamente elaboradas pelo pensamento. Isso eu aprendi com o Pierre Caye, aquele filósofo francês contemporâneo, de quem já lhe falei. O que escreveu um posfácio magnífico à tradução que ele e a Françoise Choay fizeram do De Re Aedificatoria, escrito por Alberti em torno de 1452, e em latim.

Essa resignificação (com a qual, aliás, o trabalho da tradução de qualidade também dialoga, necessariamente), que caracteriza o processo cibernético, ocorre precisamente no espaço entre a pergunta e a resposta, a entrada e a saída; no espaço delineado pelo deslocamento: o espaço-entre. Sua dinâmica alude a um espelho que ao invés de refletir os gestos de alguém, reflete os efeitos que esses gestos provocam na alteridade, o que inclui o "mundo externo", a que Freud se refere. O que se vê remete, então, aos efeitos das ações que, por sua vez, resignificam e instigam novas ações.

Um processo que não se pretende nem espontâneo, nem compulsório, mas que pode ser aprendido e até mesmo tornar-se voluntário. A ele submetemos nossas pulsões ("Trieb", em Freud e Nietzsche), cuja força constante passa a já não mais consumir tanta energia física, psíquica, individual, coletiva, etc. Mas esse trabalho de haver-se incansavelmente consigo mesmo exige de nós, e cada vez mais, algo sobre o que nos alertou Guimarães Rosa e que não canso de repetir, esse, claro, sem reedição: 

"O que a vida quer de nós é coragem".

Te amo muito, Tio !!!!
Obrigada por me fazer pensar!



domingo, 3 de fevereiro de 2013

Episódio 2



Hoje fui às compras. Não comprei uma casa, mas modos de habitar. Muitos querem vendê-los, como se isso fosse possível. Penso que os construímos todos os dias, mesmo não tendo construído a casa. Tudo bem, concordo que às vezes é mais fácil quando se a constrói, mas nem sempre.

Morar não é o mesmo que habitar. A diferença entre eles começa justamente porque um pode ser comprado, o outro, não. Podemos comprar as coisas, não o conforto ou a beleza de sua disposição conjunta. Podemos comprar as janelas, mas não o vento que as faz vivas. E a vista, por assim dizer. Essa então, mesmo pagando à vista pode nunca valer o preço, ou ser logo perdida. É uma questão de sorte, que também não se compra. Compra-se apenas a ilusão dela, em bilhetes baratos.

Habitar demanda ação. Quem dera existisse mesmo um Plano Habitacional que nos tornasse  cientes de nossas responsabilidades mediante uma assinatura e um carimbo. Valeria até a pena ficar em fila e pagar a conta disso em suaves prestações... Mas o habitar vai além da moradia, não demanda esforço só de dinheiro. É preciso dar-se conta, mais do que ter uma conta. É preciso render-se ao esforço, mais do que esforçar-se para render. É preciso envolver-se para se desenvolver. Envolver-se consigo mesmo e com a produção de seus desejos, mais do que desejar algo pronto, externo ao seu próprio Eu. O fortalecimento deste não é sem o que lhe é exterior, que chega a ser imprescindível àquele. Mas o foco está na relação, e esta se organiza em torno do envolvimento, do habitar, da excelência de sua essência.

p.s. A foto é da casa de Charles Dickens, Bloomsbury, London, UK. 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Episódio 1



Hoje fui às compras. Comprei um pouco de chuva, pois minha alma trabalha melhor quando está molhada. Mas veio muita, e me assustei. Na hora da entrega, pedi que deixassem um pouco no Nordeste, que está carente, mas disseram que evaporaria antes de chegar lá. Deve ser igual a dinheiro quando se intenta que resolva sozinho as coisas. Carece toda uma atmosfera favorável para isso suceder. Na política, chama-se res publica, algo que também não se compra nem com mísseis, soldados, tanques, nem mesmo com a democracia representativa, por si só. A res é pública, mas não é automática nem imediata. Esse blog quer dizer dessas coisas, do que o dinheiro não compra nem sob tortura, ou melhor, nem sob cartão de crédito.

Aliás, uso o verbo comprar na falta de outro melhor, que designe formas imediatas de alcançar o que queremos. Mas não há "imediatez", palavra cujo sentido de "sem mediador" está se perdendo, com a globalização, em favor do fato de que ela mesma significa ´não demandar quase tempo nenhum para acontecer´. Um sentido fundamental, que desapareceu antes mesmo de nascer na última flor do lácio. Não alcançamos o que queremos se não nos tornarmos mediadores, se não tomarmos uma postura ativa e crítica diante de nossos desejos. Não, isso também não se compra, como o próprio verbo. Podem-se comprar palavras, mas não as ideias que as deslocam e condensam. Há dez horas capino frases para resumir aquilo que preciso dizer, mas o matagal continua o mesmo. Não é sempre que conseguimos fazer um dia produtivo no trabalho. Podemos comprar flores, mas não o seu florescimento.

Aí temos que aceitar o fato - outra coisa que não se compra - que há dias em que estamos mais propensos a jogar palavras fora que a investi-las conjugando pensamentos e ações. Não, não se compra uma ação; não essas que realmente fazem diferença. O que o capitalismo vende com esse nome é apenas a representação aleatória de uma ideia distante. Mas pode-se, sim, comprar a ideia de uma ação, que não nos dispensa de manter algum envolvimento ativo com o seu desenrolamento.

Envolvimento. Algo que também não se compra. Compra-se seu oposto: o desenvolvimento. E aí sofremos todos em desarticulação com as ecologias; do meio-ambiente, das relações sociais, da subjetividade humana. Essa subjetividade, que tampouco se compra; até porque demanda ser construída e já não há mais tantos interessados na edificação de si mesmos, há? Interessados em estabelecer relações com o mundo e com os outros, respeitando as singularidades? Diz que sim, diz que sim!!! Concordo que é mais fácil sair e comprar um estilo para si. E vesti-lo, e morá-lo, e guiá-lo sendo por ele conduzido inadvertidamente. Abstêm-se de nada, menos de elaborar o seu próprio olhar sobre si e a alteridade.

Aliás, o olhar também é algo que não se compra. Podem-se comprar óculos, lentes, delineadores, cílios postiços e máscaras que prometem triplicá-los, mas não se compra um olhar da mãe depois que ela desapareceu, como se diz em francês. Um eufemismo que também permeia a lembrança de quando os tínhamos, ainda que sob a força da moeda das gracinhas e "levadezas", como ela dizia. Seus adjetivos que não se ouvem mais, como "ideidosa", "sinapismo", "aviltante". Somos seres singulares até nas palavras que usamos, porque as inventamos a cada pronúncia. Não se compra o som da voz de alguém te dizendo bom dia, carinhosamente e com um beijo. Também não se compra o olhar do seu cachorro para você. Nem com um petisco. O olhar de quem escolheu te amar unicamente por afinidade de companhia e que tem nele sua única forma de comunicação. Além das lambidas, claro, todas elas "incompráveis". Talvez isso seja parte do que vale a vida. Não um valor que lhe seja atribuído heteronomamente, mas um valor que se compõe do que é realmente caro a cada um de nós e aos grupos que formamos juntos. 

Este blog fala de coisas transcendentais. Não porque místicas, já que a origem da palavra não nos remete a isso. Transcendentais são as coisas simples que nos fazem ir além de nós mesmos, e das conjunturas em que nossa realidade nos insere, para construirmos, inventarmos, reeditarmos modos de vida, procedimentos, regras, abordagens, conceitos. Como a leitura. Não podemos nos confundir: compram-se livros, mas a leitura é uma construção muito particular, ainda que permeável, beneficiada e instigadora do diálogo. Virtude que está longe de ser compulsória, apesar de poder ser aprendida até um dia tornar-se voluntária e passar a aperfeiçoar-se sob menor esforço. O prazer da leitura, da leitura em profundidade, não se aprende necessariamente na escola. É um processo que acontece em qualquer idade, desde que se mergulhe na poesia, ou mesmo na prosa poética de Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e tantos outros que, ansiosos em suas prateleiras, aguardam a chance de nos ajudarem a transformar nossas vidas. Um processo que articula fraternalmente diversão e concentração. Aliás, a convivência fraternal também não se compra, mas isso já é uma outra história...

p.s. Sobre a foto, trata-se de uma pessoa maravilhosa em todos os sentidos, que terá seu niver comemorado hoje na casa do avô, outra coisa que dinheiro nenhum no mundo compra. Se comprasse, eu teria tentado ter um; mesmo que fosse só por um dia.