Hoje fui às compras. Mas nada comprei. Ganhei aquilo que de precisava para o momento. Veio com a leveza e transparência próprias das coisas mais necessárias. O que ganhei foi um convite ao pensamento. Veio na forma de e-mail, por isso tão rápido e preciso. Tá aí outra coisa que não se compra: um e-mail. Pode-se comprar uma conta de e-mail, isso sim; mas não a vontade, em alguém, de escrever-lhe algo. Esse ato é a própria demonstração de uma articulação que ultrapassa a mera conexão digital.
-----Mensagem original-----
De: Meu Tio (afinal, não é só o sobrinho do Jacques Tati que tem um "Mon Oncle" !)
Enviada em: segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013 16:28
Para: seis pessoas além de mim
Assunto: Provérbio
Somos o que fazemos, sobretudo o que fazemos para mudarmos o que somos. Galiano
----- Fim da mensagem -----
Ao que respondi-lhe, sem economia, mas com esforço de organização; outra coisa que não se compra. Aliás, como todo esforço, né?
Tio,
Concordo com tudo, menos com o verbo "mudar".
Dizem os franceses que quando tudo muda, nada muda: "Quand tout change,
rien ne change".
Prefiro o verbo "transformar". Pois não se pode
menosprezar a forma, reduzindo-a a uma mera forma; subestimando a ideia de se
alterar algo respeitando ainda os vestígios do que foi, do que o originou. Acho
que Galiano concordaria com o meu argumento. Afinal, a moda não é sem forma, e
revisitações elaboradas a partir de um novo olhar parecem mesmo caracterizá-la,
não é?
Esse respeito de que falo não remete à mera preservação
de formas e conteúdos, e muito menos de um significado que lhe é atribuído
heteronomamente, mas à preservação de sua capacidade de produzir efeito, efeito
na forma de um querer que ultrapassa o relacionamento com a coisa em si,
promovendo um relacionar-se com o contexto em que se insere aquilo que foi
transformado.
Freud entendia nossa capacidade de transformação - que
Nietzsche atribuía à inventividade, e provavelmente influenciou Freud nesse
entendimento - como efeito de nossas relações com os deslocamentos e
condensações mentais de percepções, sentimentos e informações que, na forma de
pensamento e motivados pela crítica, conduz-nos à ação de transformar a
realidade.
Alberti - um arquiteto da segunda fase do Renascimento
italiano com quem tenho instigantes relações intelectuais bem dialógicas, por
assim dizer - chamava o campo onde elas acontecem de "canteiro
mental". Freud o organizava em pelo menos três esferas: "Consciente,
Pré-consciente, Inconsciente". De todo modo, parece tratar-se realmente de
um espaço de trabalho pesado, ainda que invisível para nós. Nesse sentido, há
algo mais contemporâneo que essa estrutura de funcionamento? Lidamos o dia todo
com máquinas e desconhecemos quase absolutamente seus mecanismos internos.
Parece que nossos mecanismos têm mesmo um quê de "maquínicos", como dizia
Guattari, apesar de não os querermos ´mecanizados´. Essa confusão de termos em ato, de
fato, não convém.
Em decorrência dessas afirmações, prefiro transformar
esse provérbio que você me ofereceu em uma elaboração não tão sintética:
Percebemo-nos pelo que fazemos, incluindo o que fazemos
para transformarmos nós mesmos e os modos como nos articulamos com a realidade
- que nos condiciona - e com a alteridade - que nos lança a esse desafiador
processo de funcionamento e fabricação ininterruptos, apesar de plenos de vazios. Um fazer-se que não prescinde de alguma
reedição; motivada, talvez, por esses mesmos e inevitáveis vazios.
Na linguagem dos gregos, essa idéia é representada pela
palavra "cibernética"; que expressa o princípio da retroalimentação (que
possibilita aos organismos vivos resignificarem suas ações por meio da
interpretação e avaliação de respostas anteriormente dadas). Parece-me que Norbert Wiener
- inventor, em 1941, do termo "cybernetics" a partir do grego
"kubernetes", que, aliás, significa piloto (aquele que tem que tomar
decisões a partir dos condicionantes da realidade tal como se lhe parece) - entendia a cibernética como o
mecanismo segundo o qual se realiza o equilíbrio flutuante que caracteriza o funcionamento
dos sistemas dinâmicos.
O interessante é que a elaboração de Freud acerca do
conceito de "Eu" - aquele que para fortalecer-se precisa tornar-se
mais independente do Super-Eu, não sem apropriar-se de novas parcelas de sua
capacidade inventiva, por assim dizer - sempre me remete à figura do Prático
que, munido de seu barquinho minúsculo, conta menos com ele que com sua
habilidade aprendida e aprimorada para lidar com os condicionantes
- geográficos, do
lugar onde se instalou o porto
- meteorológicos
- das diferenças de pressão que causam os ventos, mas também daquelas
- do capitalismo que, agravado pela globalização, quer os navios atracados - o
quanto antes - para serem descarregados (um termo controverso, aliás, e que deturpa o entendimento que algumas pessoas têm de algumas das idéias de Freud, a meu ver)
- os fluxos da maré
- os próprios mal-estares a que se encontra exposto
por estar vivo.
Esses mal-estares frequentemente originam-se de suas relações
- com o próprio corpo,
- com os outros e
- com a máquina onde trabalha, cujo estado
de conservação geralmente deixa a desejar.
Ah, essa última categoria também é, a exemplo das duas primeiras, tida
como fonte de dor e frustração na literatura de Freud, mas ele foi menos
específico nesse quesito, e a chamou de "mundo externo".
Quando um organismo vivo, como o Prático em seu porto e a partir de seu barco, responde de forma inédita ao conjunto de estímulos a que está exposto, pratica um complexo de princípios, que incluem:
- a capacidade
de mais regularmente equilibrar-se no contexto em que se insere
- a habilidade de criar novas interpretações para as
mesmas questões, novas respostas e, por que não?, novas questões.
Responder questões não é mais que
deslocá-las para um outro ponto onde serão novamente elaboradas pelo
pensamento. Isso eu aprendi com o Pierre Caye, aquele filósofo francês contemporâneo, de quem já lhe falei. O que escreveu um posfácio magnífico à tradução que ele e a Françoise Choay fizeram do De Re Aedificatoria, escrito por Alberti em torno de 1452, e em latim.
Essa resignificação (com a qual, aliás, o trabalho da tradução de qualidade também dialoga, necessariamente), que caracteriza o processo
cibernético, ocorre precisamente no espaço entre a pergunta e a resposta, a entrada
e a saída; no espaço delineado pelo deslocamento: o espaço-entre. Sua dinâmica
alude a um espelho que ao invés de refletir os gestos de alguém, reflete os
efeitos que esses gestos provocam na alteridade, o que inclui o "mundo externo", a que Freud se refere. O que se vê remete, então, aos
efeitos das ações que, por sua vez, resignificam e instigam novas ações.
Um processo que não se pretende nem espontâneo, nem
compulsório, mas que pode ser aprendido e até mesmo tornar-se voluntário. A ele submetemos nossas pulsões
("Trieb", em Freud e Nietzsche), cuja força constante passa a já não
mais consumir tanta energia física, psíquica, individual, coletiva, etc. Mas
esse trabalho de haver-se incansavelmente consigo mesmo exige de nós, e cada
vez mais, algo sobre o que nos alertou Guimarães Rosa e que não canso de
repetir, esse, claro, sem reedição:
"O que a vida quer de nós é coragem".
Te amo muito, Tio !!!!
Obrigada por me fazer pensar!