sábado, 2 de fevereiro de 2013

Episódio 1



Hoje fui às compras. Comprei um pouco de chuva, pois minha alma trabalha melhor quando está molhada. Mas veio muita, e me assustei. Na hora da entrega, pedi que deixassem um pouco no Nordeste, que está carente, mas disseram que evaporaria antes de chegar lá. Deve ser igual a dinheiro quando se intenta que resolva sozinho as coisas. Carece toda uma atmosfera favorável para isso suceder. Na política, chama-se res publica, algo que também não se compra nem com mísseis, soldados, tanques, nem mesmo com a democracia representativa, por si só. A res é pública, mas não é automática nem imediata. Esse blog quer dizer dessas coisas, do que o dinheiro não compra nem sob tortura, ou melhor, nem sob cartão de crédito.

Aliás, uso o verbo comprar na falta de outro melhor, que designe formas imediatas de alcançar o que queremos. Mas não há "imediatez", palavra cujo sentido de "sem mediador" está se perdendo, com a globalização, em favor do fato de que ela mesma significa ´não demandar quase tempo nenhum para acontecer´. Um sentido fundamental, que desapareceu antes mesmo de nascer na última flor do lácio. Não alcançamos o que queremos se não nos tornarmos mediadores, se não tomarmos uma postura ativa e crítica diante de nossos desejos. Não, isso também não se compra, como o próprio verbo. Podem-se comprar palavras, mas não as ideias que as deslocam e condensam. Há dez horas capino frases para resumir aquilo que preciso dizer, mas o matagal continua o mesmo. Não é sempre que conseguimos fazer um dia produtivo no trabalho. Podemos comprar flores, mas não o seu florescimento.

Aí temos que aceitar o fato - outra coisa que não se compra - que há dias em que estamos mais propensos a jogar palavras fora que a investi-las conjugando pensamentos e ações. Não, não se compra uma ação; não essas que realmente fazem diferença. O que o capitalismo vende com esse nome é apenas a representação aleatória de uma ideia distante. Mas pode-se, sim, comprar a ideia de uma ação, que não nos dispensa de manter algum envolvimento ativo com o seu desenrolamento.

Envolvimento. Algo que também não se compra. Compra-se seu oposto: o desenvolvimento. E aí sofremos todos em desarticulação com as ecologias; do meio-ambiente, das relações sociais, da subjetividade humana. Essa subjetividade, que tampouco se compra; até porque demanda ser construída e já não há mais tantos interessados na edificação de si mesmos, há? Interessados em estabelecer relações com o mundo e com os outros, respeitando as singularidades? Diz que sim, diz que sim!!! Concordo que é mais fácil sair e comprar um estilo para si. E vesti-lo, e morá-lo, e guiá-lo sendo por ele conduzido inadvertidamente. Abstêm-se de nada, menos de elaborar o seu próprio olhar sobre si e a alteridade.

Aliás, o olhar também é algo que não se compra. Podem-se comprar óculos, lentes, delineadores, cílios postiços e máscaras que prometem triplicá-los, mas não se compra um olhar da mãe depois que ela desapareceu, como se diz em francês. Um eufemismo que também permeia a lembrança de quando os tínhamos, ainda que sob a força da moeda das gracinhas e "levadezas", como ela dizia. Seus adjetivos que não se ouvem mais, como "ideidosa", "sinapismo", "aviltante". Somos seres singulares até nas palavras que usamos, porque as inventamos a cada pronúncia. Não se compra o som da voz de alguém te dizendo bom dia, carinhosamente e com um beijo. Também não se compra o olhar do seu cachorro para você. Nem com um petisco. O olhar de quem escolheu te amar unicamente por afinidade de companhia e que tem nele sua única forma de comunicação. Além das lambidas, claro, todas elas "incompráveis". Talvez isso seja parte do que vale a vida. Não um valor que lhe seja atribuído heteronomamente, mas um valor que se compõe do que é realmente caro a cada um de nós e aos grupos que formamos juntos. 

Este blog fala de coisas transcendentais. Não porque místicas, já que a origem da palavra não nos remete a isso. Transcendentais são as coisas simples que nos fazem ir além de nós mesmos, e das conjunturas em que nossa realidade nos insere, para construirmos, inventarmos, reeditarmos modos de vida, procedimentos, regras, abordagens, conceitos. Como a leitura. Não podemos nos confundir: compram-se livros, mas a leitura é uma construção muito particular, ainda que permeável, beneficiada e instigadora do diálogo. Virtude que está longe de ser compulsória, apesar de poder ser aprendida até um dia tornar-se voluntária e passar a aperfeiçoar-se sob menor esforço. O prazer da leitura, da leitura em profundidade, não se aprende necessariamente na escola. É um processo que acontece em qualquer idade, desde que se mergulhe na poesia, ou mesmo na prosa poética de Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e tantos outros que, ansiosos em suas prateleiras, aguardam a chance de nos ajudarem a transformar nossas vidas. Um processo que articula fraternalmente diversão e concentração. Aliás, a convivência fraternal também não se compra, mas isso já é uma outra história...

p.s. Sobre a foto, trata-se de uma pessoa maravilhosa em todos os sentidos, que terá seu niver comemorado hoje na casa do avô, outra coisa que dinheiro nenhum no mundo compra. Se comprasse, eu teria tentado ter um; mesmo que fosse só por um dia.

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