segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Episódio 3


Hoje fui às compras. Mas nada comprei. Ganhei aquilo que de precisava para o momento. Veio com a leveza e transparência próprias das coisas mais necessárias. O que ganhei foi um convite ao pensamento. Veio na forma de e-mail, por isso tão rápido e preciso. Tá aí outra coisa que não se compra: um e-mail. Pode-se comprar uma conta de e-mail, isso sim; mas não a vontade, em alguém, de escrever-lhe algo. Esse ato é a própria demonstração de uma articulação que ultrapassa a mera conexão digital. 

-----Mensagem original-----
De: Meu Tio (afinal, não é só o sobrinho do Jacques Tati que tem um "Mon Oncle" !)
Enviada em: segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013 16:28
Para: seis pessoas além de mim
Assunto: Provérbio

Somos o que fazemos, sobretudo o que fazemos para mudarmos o que somos. Galiano
----- Fim da mensagem -----

Ao que respondi-lhe, sem economia, mas com esforço de organização; outra coisa que não se compra. Aliás, como todo esforço, né?

Tio,

Concordo com tudo, menos com o verbo "mudar". Dizem os franceses que quando tudo muda, nada muda: "Quand tout change, rien ne change".

Prefiro o verbo "transformar". Pois não se pode menosprezar a forma, reduzindo-a a uma mera forma; subestimando a ideia de se alterar algo respeitando ainda os vestígios do que foi, do que o originou. Acho que Galiano concordaria com o meu argumento. Afinal, a moda não é sem forma, e revisitações elaboradas a partir de um novo olhar parecem mesmo caracterizá-la, não é?

Esse respeito de que falo não remete à mera preservação de formas e conteúdos, e muito menos de um significado que lhe é atribuído heteronomamente, mas à preservação de sua capacidade de produzir efeito, efeito na forma de um querer que ultrapassa o relacionamento com a coisa em si, promovendo um relacionar-se com o contexto em que se insere aquilo que foi transformado.

Freud entendia nossa capacidade de transformação - que Nietzsche atribuía à inventividade, e provavelmente influenciou Freud nesse entendimento - como efeito de nossas relações com os deslocamentos e condensações mentais de percepções, sentimentos e informações que, na forma de pensamento e motivados pela crítica, conduz-nos à ação de transformar a realidade.

Alberti - um arquiteto da segunda fase do Renascimento italiano com quem tenho instigantes relações intelectuais bem dialógicas, por assim dizer - chamava o campo onde elas acontecem de "canteiro mental". Freud o organizava em pelo menos três esferas: "Consciente, Pré-consciente, Inconsciente". De todo modo, parece tratar-se realmente de um espaço de trabalho pesado, ainda que invisível para nós. Nesse sentido, há algo mais contemporâneo que essa estrutura de funcionamento? Lidamos o dia todo com máquinas e desconhecemos quase absolutamente seus mecanismos internos. Parece que nossos mecanismos têm mesmo um quê de "maquínicos", como dizia Guattari, apesar de não os querermos ´mecanizados´. Essa confusão de termos em ato, de fato, não convém.

Em decorrência dessas afirmações, prefiro transformar esse provérbio que você me ofereceu em uma elaboração não tão sintética:

Percebemo-nos pelo que fazemos, incluindo o que fazemos para transformarmos nós mesmos e os modos como nos articulamos com a realidade - que nos condiciona - e com a alteridade - que nos lança a esse desafiador processo de funcionamento e fabricação ininterruptos, apesar de plenos de vazios. Um fazer-se que não prescinde de alguma reedição; motivada, talvez, por esses mesmos e inevitáveis vazios.

Na linguagem dos gregos, essa idéia é representada pela palavra "cibernética"; que expressa o princípio da retroalimentação (que possibilita aos organismos vivos resignificarem suas ações por meio da interpretação e avaliação de respostas anteriormente dadas). Parece-me que Norbert Wiener - inventor, em 1941, do termo "cybernetics" a partir do grego "kubernetes", que, aliás, significa piloto (aquele que tem que tomar decisões a partir dos condicionantes da realidade tal como se lhe parece) - entendia a cibernética como o mecanismo segundo o qual se realiza o equilíbrio flutuante que caracteriza o funcionamento dos sistemas dinâmicos.

O interessante é que a elaboração de Freud acerca do conceito de "Eu" - aquele que para fortalecer-se precisa tornar-se mais independente do Super-Eu, não sem apropriar-se de novas parcelas de sua capacidade inventiva, por assim dizer - sempre me remete à figura do Prático que, munido de seu barquinho minúsculo, conta menos com ele que com sua habilidade aprendida e aprimorada para lidar com os condicionantes 
  • geográficos, do lugar onde se instalou o porto 
  • meteorológicos 
  • das diferenças de pressão que causam os ventos, mas também daquelas
  • do capitalismo que, agravado pela globalização, quer os navios atracados - o quanto antes - para serem descarregados (um termo controverso, aliás, e que deturpa o entendimento que algumas pessoas têm de algumas das idéias de Freud, a meu ver)
  • os fluxos da maré 
  • os próprios mal-estares a que se encontra exposto por estar vivo. 

Esses mal-estares frequentemente originam-se de suas relações 
  • com o próprio corpo, 
  • com os outros e 
  • com a máquina onde trabalha, cujo estado de conservação geralmente deixa a desejar. 
Ah, essa última categoria também é, a exemplo das duas primeiras, tida como fonte de dor e frustração na literatura de Freud, mas ele foi menos específico nesse quesito, e a chamou de "mundo externo".

Quando um organismo vivo, como o Prático em seu porto e a partir de seu barco, responde de forma inédita ao conjunto de estímulos a que está exposto, pratica um complexo de princípios, que incluem: 

  • a capacidade de mais regularmente equilibrar-se no contexto em que se insere 
  • a habilidade de criar novas interpretações para as mesmas questões, novas respostas e, por que não?, novas questões. 

Responder questões não é mais que deslocá-las para um outro ponto onde serão novamente elaboradas pelo pensamento. Isso eu aprendi com o Pierre Caye, aquele filósofo francês contemporâneo, de quem já lhe falei. O que escreveu um posfácio magnífico à tradução que ele e a Françoise Choay fizeram do De Re Aedificatoria, escrito por Alberti em torno de 1452, e em latim.

Essa resignificação (com a qual, aliás, o trabalho da tradução de qualidade também dialoga, necessariamente), que caracteriza o processo cibernético, ocorre precisamente no espaço entre a pergunta e a resposta, a entrada e a saída; no espaço delineado pelo deslocamento: o espaço-entre. Sua dinâmica alude a um espelho que ao invés de refletir os gestos de alguém, reflete os efeitos que esses gestos provocam na alteridade, o que inclui o "mundo externo", a que Freud se refere. O que se vê remete, então, aos efeitos das ações que, por sua vez, resignificam e instigam novas ações.

Um processo que não se pretende nem espontâneo, nem compulsório, mas que pode ser aprendido e até mesmo tornar-se voluntário. A ele submetemos nossas pulsões ("Trieb", em Freud e Nietzsche), cuja força constante passa a já não mais consumir tanta energia física, psíquica, individual, coletiva, etc. Mas esse trabalho de haver-se incansavelmente consigo mesmo exige de nós, e cada vez mais, algo sobre o que nos alertou Guimarães Rosa e que não canso de repetir, esse, claro, sem reedição: 

"O que a vida quer de nós é coragem".

Te amo muito, Tio !!!!
Obrigada por me fazer pensar!



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