sábado, 6 de julho de 2013

Comprei um romance


Hoje fui às compras. Comprei um romance. Ele conta a história de um casal que foi vizinho de berço no início dos anos 80 no Brasil. Inseparáveis por toda a infância e juventude, veem-se, três décadas depois, adultos e casados. Como também seria com dois sujeitos quaisquer, suas compatibilidades aninham-se nas bordas de suas incompatibilidades. As faltas de um surtem efeito no outro, e seguem pela vida sem saber imaginá-la sem o desejo inesgotável que isso lhes desperta.

Porém, o fruto de seus desentendimentos velados tornam-se visíveis pela carência de qualidade que marca sua vida cotidiana, seu espaço, seu tempo. Ele, viciado em novidades, a cada dia aparece de roupa nova e pensa, assim, reinventar-se. Já ela, usa as mesmas roupas desde antes-de-Cristo. E esse aparente desleixo resguarda, sim, seu lado sóbrio e sedutor. Ao contrário de sua roupagem, a relação politicamente civilizada que estabelecem raramente vai além das aparências. O marido, a certa altura, não consegue mais disfarçar seu comportamento sádico, dominador, egocêntrico. Ele não poderia mesmo ter encontrado esposa mais conveniente que essa, cujos traços masoquistas tornam-se mais evidentes a cada investida sua.

Ele a conheceu num dia de calor. Havia muita gente na rua, mas sua beleza e seu frescor transmitiram-lhe imediatamente a certeza de que através dela conseguiria a legitimidade necessária para realizar seus planos de futuro. Ao longo de todos esses anos, a forte presença dessa mulher disfarçava sua sutil vulnerabilidade. Não eram infrequentes os episódios em que apanhava feio às escondidas, mostrando-se ainda assim disposta a oferecer a outra face na esperança de fazer ver, nesse gesto, seu valor. Esse comportamento neurótico foi seu recurso de sobrevivência por muitos anos; ela fugia à realidade. Recebia cada golpe contra sua dignidade com uma resignação que não é sem algum prazer histérico, próprio da demanda, tão sua, de ser desejada, de ter reconhecida a falta que pode fazer sua ausência. Ela sabe que, sem ela, ele não consegue sobreviver.

De sua parte, o marido reina absoluto em sua psicose, cuja tática não é a fuga da realidade, como na neurose dela, mas a criação de realidades paralelas em que pouco a pouco ele se aliena das realidades concretas do mundo vivido. As questões carentes de atenção têm seus sintomas disfarçados; ele rasura os boletins dos filhos e age como se tirassem boas notas, amontoa-os em um quarto que pinta de azul, quando deveria possibilitar que construíssem seus próprios espaços. Ele dá toda a liberdade aos filhos, mas só porque acredita que são incapazes de sair da mesmice com que os alimenta. Esbalda-se na criação de fantasias que sua mulher não aprova, mas cala-se, enfraquecendo a cada vez a voz. Fazendo vista grossa assim às falhas do marido, ela sequer consegue poupar os filhos dos avanços obsessivos dessa psicose e de seus efeitos. Mas acontece que os filhos um dia começam a enxergar a ambos atrás das máscaras.

Entendem que a doença do pai excede os limites do tolerável e agrava-se pela neurose da mãe. Vêm com clareza que essa situação precisa ser contida, pois começa a comprometer os que vivem sob a égide desse casamento. Sua patologia, visível na própria casa que sobrevive à deriva, faz também com que os filhos pareçam órfãos, divididos entre a lealdade ao amor pela mãe e a própria obrigação que isso gera. Pelo pai, impera uma dependência de que não sabem ainda se desligar. Mas dentro dessa estrutura mesma começam a brotar transformações. Os filhos tomam consciência de que, se não agirem, as patologias dos pais e de seu relacionamento significará a ruína de todos.

Decidem encarar a neurose da mãe, procurando ajudá-la a tornar-se mais forte não só contra os avanços psicóticos do pai, mas também contra as frustrações inerentes à própria realidade. Sobre isso decidem aplicar regras, novas e antigas, vigiando-lhes incansavelmente o cumprimento. Eles reconhecem que essa luta é inextinguível: os pais nunca vão se separar, mas sempre correrão o risco de se perderem na doença um do outro. A estratégia é nunca abandoná-los, mas tomar para si a tarefa de cuidar deles, da casa e das relações que ali têm lugar. Percebem a casa como um ambiente que poderá ajudá-los a tornar seu desenvolvimento individual e coletivo mais independente desse conflito, apesar de sempre estarem sujeitos a ser por ele condicionados. Esses filhos poderiam ter-se tornado neuróticos como a mãe, e quase o fizeram, de fato. Quase deram as costas aos conflitos latentes que nunca lhes davam folga. Mas escaparam dessa fuga pela via do humor. Vendo o pai dominar a mãe, faziam piada, faziam festa, e jamais deixaram de sonhar enquanto dormiam. Foi assim que os problemas acederam à sua consciência.

Com isso seus sonhos estão virando planos. Entraram para o campo da ação, fazendo com que criem modos de se organizarem para vigiar o pai, ajudar a mãe a se fortalecer, e ainda tocar sua própria vida adiante, desvencilhando-se das armadilhas morais e psíquicas que, a cada instante, podem fazê-los voltar para o lugar de onde partiram.

Bom, isso é até onde foi minha leitura até agora. Mas é um livro tão cheio de detalhes que só dá para relatar assim, por alto, a história. Os personagens são muitos, principalmente os filhos, e não sou muito boa com nomes. Mas lembro que o pai chama-se Neoliberalismo e a mãe, Democracia.

p.s. A foto é de uma das casas deles, onde o domínio do pai é gritante.

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