Hoje fui às compras. Comprei um
romance. Ele conta a história de um casal que foi vizinho de berço no início
dos anos 80 no Brasil. Inseparáveis por toda a infância e juventude, veem-se, três
décadas depois, adultos e casados. Como também seria com dois sujeitos
quaisquer, suas compatibilidades aninham-se nas bordas de suas
incompatibilidades. As faltas de um surtem efeito no outro, e seguem pela vida
sem saber imaginá-la sem o desejo inesgotável que isso lhes desperta.
Porém, o fruto de seus
desentendimentos velados tornam-se visíveis pela carência de qualidade que
marca sua vida cotidiana, seu espaço, seu tempo. Ele, viciado em novidades, a
cada dia aparece de roupa nova e pensa, assim, reinventar-se. Já ela, usa as
mesmas roupas desde antes-de-Cristo. E esse aparente desleixo resguarda, sim,
seu lado sóbrio e sedutor. Ao contrário de sua roupagem, a relação politicamente
civilizada que estabelecem raramente vai além das aparências. O marido, a certa
altura, não consegue mais disfarçar seu comportamento sádico, dominador,
egocêntrico. Ele não poderia mesmo ter encontrado esposa mais conveniente que
essa, cujos traços masoquistas tornam-se mais evidentes a cada investida sua.
Ele a conheceu num dia de calor. Havia
muita gente na rua, mas sua beleza e seu frescor transmitiram-lhe imediatamente
a certeza de que através dela conseguiria a legitimidade necessária para realizar
seus planos de futuro. Ao longo de todos esses anos, a forte presença dessa
mulher disfarçava sua sutil vulnerabilidade. Não eram infrequentes os episódios
em que apanhava feio às escondidas, mostrando-se ainda assim disposta a
oferecer a outra face na esperança de fazer ver, nesse gesto, seu valor. Esse
comportamento neurótico foi seu recurso de sobrevivência por muitos anos; ela
fugia à realidade. Recebia cada golpe contra sua dignidade com uma resignação
que não é sem algum prazer histérico, próprio da demanda, tão sua, de ser
desejada, de ter reconhecida a falta que pode fazer sua ausência. Ela sabe que,
sem ela, ele não consegue sobreviver.
De sua parte, o marido reina
absoluto em sua psicose, cuja tática não é a fuga da realidade, como na
neurose dela, mas a criação de realidades paralelas em que pouco a pouco ele se
aliena das realidades concretas do mundo vivido. As questões carentes de
atenção têm seus sintomas disfarçados; ele rasura os boletins dos filhos e age
como se tirassem boas notas, amontoa-os em um quarto que pinta de azul, quando deveria
possibilitar que construíssem seus próprios espaços. Ele dá toda a liberdade aos filhos, mas só porque acredita que são incapazes de sair da mesmice com que os alimenta. Esbalda-se na criação de fantasias que sua mulher não
aprova, mas cala-se, enfraquecendo a cada vez a voz. Fazendo vista grossa assim
às falhas do marido, ela sequer consegue poupar os filhos dos avanços obsessivos
dessa psicose e de seus efeitos. Mas acontece que os filhos um dia começam a enxergar a
ambos atrás das máscaras.
Entendem que a doença do pai excede
os limites do tolerável e agrava-se pela neurose da mãe. Vêm com clareza que
essa situação precisa ser contida, pois começa a comprometer os
que vivem sob a égide desse casamento. Sua patologia, visível na própria casa
que sobrevive à deriva, faz também com que os filhos pareçam órfãos, divididos
entre a lealdade ao amor pela mãe e a própria obrigação que isso gera. Pelo
pai, impera uma dependência de que não sabem ainda se desligar. Mas dentro dessa
estrutura mesma começam a brotar transformações. Os filhos tomam consciência de
que, se não agirem, as patologias dos pais e de seu relacionamento significará
a ruína de todos.
Decidem encarar a neurose da mãe,
procurando ajudá-la a tornar-se mais forte não só contra os avanços psicóticos
do pai, mas também contra as frustrações inerentes à própria realidade. Sobre isso
decidem aplicar regras, novas e antigas, vigiando-lhes incansavelmente o
cumprimento. Eles reconhecem que essa luta é inextinguível: os pais nunca vão
se separar, mas sempre correrão o risco de se perderem na doença um do outro. A estratégia
é nunca abandoná-los, mas tomar para si a tarefa de cuidar deles, da casa e das
relações que ali têm lugar. Percebem a casa como um ambiente que poderá
ajudá-los a tornar seu desenvolvimento individual e coletivo mais independente
desse conflito, apesar de sempre estarem sujeitos a ser por ele condicionados. Esses
filhos poderiam ter-se tornado neuróticos como a mãe, e quase o fizeram, de
fato. Quase deram as costas aos conflitos latentes que nunca lhes davam folga.
Mas escaparam dessa fuga pela via do humor. Vendo o pai dominar a mãe, faziam
piada, faziam festa, e jamais deixaram de sonhar enquanto dormiam. Foi assim
que os problemas acederam à sua consciência.
Com isso seus sonhos estão
virando planos. Entraram para o campo da ação, fazendo com que criem modos de
se organizarem para vigiar o pai, ajudar a mãe a se fortalecer, e ainda tocar
sua própria vida adiante, desvencilhando-se das armadilhas morais e psíquicas que,
a cada instante, podem fazê-los voltar para o lugar de onde partiram.
Bom, isso é até onde foi minha
leitura até agora. Mas é um livro tão cheio de detalhes que só dá para relatar
assim, por alto, a história. Os personagens são muitos, principalmente os
filhos, e não sou muito boa com nomes. Mas lembro que o pai chama-se Neoliberalismo e
a mãe, Democracia.
p.s. A foto é de uma das casas deles,
onde o domínio do pai é gritante.