domingo, 21 de julho de 2013

Mind the gap


Hoje fui às compras. Comprei um lugar. Um lugar que é um não-lugar, pois não me oferece qualquer identidade. Um lugar que não me permite ficar, apenas passar e desaparecer. É essa dinâmica que justifica sua existência. Um desaparecer que se repete, novo, a cada aparecer.

Há lugares que nos conduzem facilmente a esse não-lugar. Lugares que não estão no tempo-espaço onde se mostram, pois constituem apenas uma expressão suavemente concreta do presente. Só ficamos ali por um instante, e esse não-ficar pode fazer dele o lugar-não-lugar do pensamento.

Não se fica porque não se buscam identidades. Identidades congelam o pensar. São súditas da ordem. Pensar vai na contra-mão disso. Pensar é estar de passagem. É questionar a ordem, não sem maravilhar-se pelo fato dela existir, imaginando o que a fez possível, procurando em sua materialidade traços do movimento que a formou, imaginando a partir de seus registros o que supostamente a fez estabelecer-se e como isso poderia ter sido de outra forma.

É possível sentir o potencial desse pensamento circulando no ambiente construído, especialmente nas cidades antigas, nos edifícios históricos, como esse da foto, cujas fundações remontam ao século I a.C. No mesmo lugar, ele repetidas vezes renasce, nunca o mesmo.  Essa falta-de-lugar no tempo é característica tornada visível pela arquitetura que faz o edifício pertencer a muitos tempos e, contudo, a nenhum especialmente. 

Já o sujeito almeja a falta-de-lugar no espaço. Do contrário, ele seria árvore. Ele almeja o espaço criado pela falta-de-espaço, o espaço-entre, o intervalo de que é feito o pensamento; matéria-prima da ação que o leva longe. Esse espaço-entre é o espaço do desejo, onde ele pode cultivar sua liberdade, colher suas escolhas e, outra vez, partir.


p.s. Atualmente funciona nesse edifício o Museu Machado de Castro. Coimbra, Portugal.

domingo, 14 de julho de 2013

O Bom-Bim-Bom do Brasil


Hoje fui às compras. Comprei o Brasil de volta. Mas só o que há de bom nele. O de ruim dei de esmola aos políticos corruptos que já estavam de partida. Eles levaram muita coisa, é verdade, principalmente a Própria Incompetência (para o que não se referisse a encher os próprios bolsos). Mas não é só ela que vai cuidar deles. Fiz questão que levassem também a Injustiça, que prometeu auxiliá-los em desavenças futuras. Fiquei tranquila porque sei que ela é como a irmã que aqui ficou, "tarda mas não falha". Gastaram os últimos quinhões de felicidade que lhes restavam pensando terem levado a melhor, já que a irmã que ficou é cega. Dignos de Pena. Aliás essa também foi, porque aqui ninguém mais vai ter pena de ninguém. Levaram a Ignorância, que não saberia mesmo viver longe deles. Cá entre nós, acho que é recíproco. Vendo-a ir, o Desemprego também foi, pois ainda é um bebê de peito. Aliás, lá ele vai crescer forte e implacável na companhia de quem o criou, o Capital. Aliás este, meio estabanado, quando voltou para buscar a senhora sua mãe - a D. Ganância - esqueceu a carteira e todo o seu dinheiro para trás. Mas os políticos corruptos nem viram isso, entretidos que estavam em ajudar o Capital a levar sua mãe nos braços. E como é pesada essa mala sem alça! Com isso, levaram também todo o nosso estoque de Angústia e Aflição. Embalei uma a uma em travesseirinhos, assim eles podem não-dormir no aconchego de seus próprios desertos morais. Mas chega de falar do que se foi. Agora é curtir o que ficou e cuidar do que faremos a partir disso.


Pra começar, ficou a arte. Mas não arte vazia que se quer vendida, e só. Ficou a Arte do Cotidiano, de driblar a bola entre o tempo de um pé e outro que o olho não vê e a trave ajeita; a arte de trabalhar com prazer e dor - sim a dor ficou, pois não há esforço nem progresso sem a dor leve de quem está a crescer. Mas é dor com letra minúscula, dorzinha feliz de um país capaz de se virar em duplo twist carpado para viver e sorrir. Ficou a arte de esforçar-se para criar múltiplos e diversos entendimentos. A arte de estudar, estudar até mesclar a voz ao violão de modo tão único que recebe nome próprio: Bossa Nova. A arte de fazer o novo e a bossa, sem dar as costas ao que é velho quando é de valor. Não um valor determinado pela "ordem estabelecida", mas um valor produzido pelos neurônios que trabalham em um corpo que insiste em existir entre e com os outros, nesse mundo concreto de alma verde e amarela que é o Brasil.

Precisão


Hoje fui às compras. Comprei a precisão e seu duplo entendimento:

  • é preciso recusar as facilidades de um olhar monofocal e também as facilidades de um olhar plurifocal, mas desconexo;
  • é preciso erguer-se no ponto em que esses olhares se cruzam formando outro olhar que navega de si para o mundo e para o outro, numa distância em constante negociação, e nunca nula. 

O navio desse olhar estabiliza-se no mesmo meio que lhe permite deslocar-se. De sua própria estrutura depende vencer a resistência do meio na produção de seu deslocamento. Essa resistência é feita da recusa, que precisa ser precisa para ser preciosa. De longe, ele parece parado. É preciso ser resistente para erguer-se em movimento no preciso ponto de sua preciosa presença. 

p.s. Navegando no Tâmisa. Em primeiro plano, a Ponte do Milênio (Millenium Bridge). Londres, setembro de 2008.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A espera



Hoje fui às compras. Comprei a espera. Espera só existe uma; sua matéria prima é o tempo. Por isso ela é monstruosa. Mas, sim, há vários modelos disponíveis. Escolhi não o mais complexo, mas um que demanda alguns acessórios. Acessórios são mais que adornos, pois ornam e também têm função. São os acessórios que afastam a espera da sua crueza e da sua crueldade.

O primeiro deles - e indispensável - é o que a permite parecer suspensa no tempo. Você, que está esperando, parece sentir a espera passar sob sua existência enquanto se suspende em outra esfera. Fica tudo virtual, inclusive você. O que parece ser a espera é o próprio tempo, passando. O que mais próximo que chega a isso no mundo material é a rede. Aquela, que prendemos entre dois pilares, e restamos pendurados, suspensos sobre o tempo que corre abaixo, lentamente. Tanto que dá preguiça só de ver. É quase um Facebook. Mas há uma versão intermediária entre o material e o imaterial: é João Gilberto com sua voz suspensa entre as cordas do violão. Esse, dá vontade de vir ver.

O segundo acessório é um aparelho que torna a espera visível. Visível não como uma foto ou um filme, mas como um fenômeno. Um fenômeno interno ao corpo e ao que se instala entre a percepção e a consciência. Assim somos capazes de ver que não temos fome quando temos, que nos entusiasmamos e nos desentusiasmamos com a intensidade e a efemeridade de uma faísca, que sofremos de angústia como uma chama. Sabemos que vai-se apagar um dia, e que em seu lugar deixará uma brasa mais eficiente que ela mesma. Mas como dói. Vale dizer que esse acessório, sem o anterior, não faz o menor sentido pois só aumenta a aflição. Mas se estivermos suspensos vendo o fenômeno passar como externo, aí estamos vendo o carnaval da arquibancada. Sentimos a vibração, balançamos o corpo, mas a alma não ferve a derreter-se.

Outro acessório é um transferidor de espera. Ele nada mais faz que alterar seu ângulo de atuação. De aguda torna-se obtusa. De obtusa torna-se oclusa e, mais um pouco, enevoada. A quina do ângulo some e é necessário quase um processo cirúrgico para tirar a espera desse lugar. Mas por que comprar um acessório que esconde a própria coisa? Eu já vi querer esconder-se a si mesmo do monstro para poder derrotá-lo à espreita, mas não esconder o monstro para poder passar assoviando, como se ele não estivesse lá. É, mas a única coisa que acaba com a espera é aquilo de que ela mesma é feita. Credo! Falando assim parece até que comprei o próprio capitalismo...

A questão é que esse acessório vem grátis com a compra dos outros dois. É claro que quando algo vem de graça não carrega só virtudes. O monstro da espera torna-se invisível mas, quando esse acessório está ativo, anula a ação dos outros. Seria ótimo mesmo poder ficar sobre a rede, vendo nada passar por baixo. Seria só eu e a rede, sem a noção do que se esvai potencialmente por entre os dedos. Sem sequer a sensação da angústia como fenômeno visível, pois seu espectro estaria anulado pelo terceiro acessório. Mas não há essa opção. Brinquedo chato. Canso e vou dormir com a esperança de não sonhar com isso.

p.s A foto é para lembrar que ainda restam coisas que passam rápido no mundo, mesmo estando lá todos os dias e sendo invisíveis, às vezes.

sábado, 6 de julho de 2013

Comprei um romance


Hoje fui às compras. Comprei um romance. Ele conta a história de um casal que foi vizinho de berço no início dos anos 80 no Brasil. Inseparáveis por toda a infância e juventude, veem-se, três décadas depois, adultos e casados. Como também seria com dois sujeitos quaisquer, suas compatibilidades aninham-se nas bordas de suas incompatibilidades. As faltas de um surtem efeito no outro, e seguem pela vida sem saber imaginá-la sem o desejo inesgotável que isso lhes desperta.

Porém, o fruto de seus desentendimentos velados tornam-se visíveis pela carência de qualidade que marca sua vida cotidiana, seu espaço, seu tempo. Ele, viciado em novidades, a cada dia aparece de roupa nova e pensa, assim, reinventar-se. Já ela, usa as mesmas roupas desde antes-de-Cristo. E esse aparente desleixo resguarda, sim, seu lado sóbrio e sedutor. Ao contrário de sua roupagem, a relação politicamente civilizada que estabelecem raramente vai além das aparências. O marido, a certa altura, não consegue mais disfarçar seu comportamento sádico, dominador, egocêntrico. Ele não poderia mesmo ter encontrado esposa mais conveniente que essa, cujos traços masoquistas tornam-se mais evidentes a cada investida sua.

Ele a conheceu num dia de calor. Havia muita gente na rua, mas sua beleza e seu frescor transmitiram-lhe imediatamente a certeza de que através dela conseguiria a legitimidade necessária para realizar seus planos de futuro. Ao longo de todos esses anos, a forte presença dessa mulher disfarçava sua sutil vulnerabilidade. Não eram infrequentes os episódios em que apanhava feio às escondidas, mostrando-se ainda assim disposta a oferecer a outra face na esperança de fazer ver, nesse gesto, seu valor. Esse comportamento neurótico foi seu recurso de sobrevivência por muitos anos; ela fugia à realidade. Recebia cada golpe contra sua dignidade com uma resignação que não é sem algum prazer histérico, próprio da demanda, tão sua, de ser desejada, de ter reconhecida a falta que pode fazer sua ausência. Ela sabe que, sem ela, ele não consegue sobreviver.

De sua parte, o marido reina absoluto em sua psicose, cuja tática não é a fuga da realidade, como na neurose dela, mas a criação de realidades paralelas em que pouco a pouco ele se aliena das realidades concretas do mundo vivido. As questões carentes de atenção têm seus sintomas disfarçados; ele rasura os boletins dos filhos e age como se tirassem boas notas, amontoa-os em um quarto que pinta de azul, quando deveria possibilitar que construíssem seus próprios espaços. Ele dá toda a liberdade aos filhos, mas só porque acredita que são incapazes de sair da mesmice com que os alimenta. Esbalda-se na criação de fantasias que sua mulher não aprova, mas cala-se, enfraquecendo a cada vez a voz. Fazendo vista grossa assim às falhas do marido, ela sequer consegue poupar os filhos dos avanços obsessivos dessa psicose e de seus efeitos. Mas acontece que os filhos um dia começam a enxergar a ambos atrás das máscaras.

Entendem que a doença do pai excede os limites do tolerável e agrava-se pela neurose da mãe. Vêm com clareza que essa situação precisa ser contida, pois começa a comprometer os que vivem sob a égide desse casamento. Sua patologia, visível na própria casa que sobrevive à deriva, faz também com que os filhos pareçam órfãos, divididos entre a lealdade ao amor pela mãe e a própria obrigação que isso gera. Pelo pai, impera uma dependência de que não sabem ainda se desligar. Mas dentro dessa estrutura mesma começam a brotar transformações. Os filhos tomam consciência de que, se não agirem, as patologias dos pais e de seu relacionamento significará a ruína de todos.

Decidem encarar a neurose da mãe, procurando ajudá-la a tornar-se mais forte não só contra os avanços psicóticos do pai, mas também contra as frustrações inerentes à própria realidade. Sobre isso decidem aplicar regras, novas e antigas, vigiando-lhes incansavelmente o cumprimento. Eles reconhecem que essa luta é inextinguível: os pais nunca vão se separar, mas sempre correrão o risco de se perderem na doença um do outro. A estratégia é nunca abandoná-los, mas tomar para si a tarefa de cuidar deles, da casa e das relações que ali têm lugar. Percebem a casa como um ambiente que poderá ajudá-los a tornar seu desenvolvimento individual e coletivo mais independente desse conflito, apesar de sempre estarem sujeitos a ser por ele condicionados. Esses filhos poderiam ter-se tornado neuróticos como a mãe, e quase o fizeram, de fato. Quase deram as costas aos conflitos latentes que nunca lhes davam folga. Mas escaparam dessa fuga pela via do humor. Vendo o pai dominar a mãe, faziam piada, faziam festa, e jamais deixaram de sonhar enquanto dormiam. Foi assim que os problemas acederam à sua consciência.

Com isso seus sonhos estão virando planos. Entraram para o campo da ação, fazendo com que criem modos de se organizarem para vigiar o pai, ajudar a mãe a se fortalecer, e ainda tocar sua própria vida adiante, desvencilhando-se das armadilhas morais e psíquicas que, a cada instante, podem fazê-los voltar para o lugar de onde partiram.

Bom, isso é até onde foi minha leitura até agora. Mas é um livro tão cheio de detalhes que só dá para relatar assim, por alto, a história. Os personagens são muitos, principalmente os filhos, e não sou muito boa com nomes. Mas lembro que o pai chama-se Neoliberalismo e a mãe, Democracia.

p.s. A foto é de uma das casas deles, onde o domínio do pai é gritante.