segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Episódio 4



Hoje fui às compras. Comprei uma bolsa. Uma bolsa daquelas onde carregar sua energia e conduzir seus sonhos já em fase de realização. Uma bolsa cheia de compartimentos. Ali você carrega oportunidades secundárias que sempre aparecem e precisam ficar à mão. Inclusive bolsilhos discretos, onde guardar seu Talento preferido para a hora que bater aquela fome de conhecimento. Uma bolsa leve, mas robusta. Fácil de carregar, mas difícil de encontrar. E mesmo depois que a encontra você ainda tem que consegui-la. A moeda com que se pode comprá-la passa longe das verdinhas. Trata-se da moeda mais valorizada do mundo, pelo menos no planeta em que vivo (atualmente meio isolado e deserto, é verdade). É uma moeda antiga e ainda cunhada segundo os mesmos métodos desde sempre: chama-se mérito. Seus investimentos são vários, mas o sistema de acumulação é principalmente a poupança. Porém, cada retirada que você faz, só acrescenta. É a moeda dos sonhos? Em parte, pois é a moeda com o mais alto índice de realidade. Só que seus primeiros centavos são, sim, fabricados com sonhos.

Sobre a foto, um talento especial do marido, que sabe sacar a máquina no momento certo, único, inesquecível e prolongá-lo ad eternum.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Episódio 3


Hoje fui às compras. Mas nada comprei. Ganhei aquilo que de precisava para o momento. Veio com a leveza e transparência próprias das coisas mais necessárias. O que ganhei foi um convite ao pensamento. Veio na forma de e-mail, por isso tão rápido e preciso. Tá aí outra coisa que não se compra: um e-mail. Pode-se comprar uma conta de e-mail, isso sim; mas não a vontade, em alguém, de escrever-lhe algo. Esse ato é a própria demonstração de uma articulação que ultrapassa a mera conexão digital. 

-----Mensagem original-----
De: Meu Tio (afinal, não é só o sobrinho do Jacques Tati que tem um "Mon Oncle" !)
Enviada em: segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013 16:28
Para: seis pessoas além de mim
Assunto: Provérbio

Somos o que fazemos, sobretudo o que fazemos para mudarmos o que somos. Galiano
----- Fim da mensagem -----

Ao que respondi-lhe, sem economia, mas com esforço de organização; outra coisa que não se compra. Aliás, como todo esforço, né?

Tio,

Concordo com tudo, menos com o verbo "mudar". Dizem os franceses que quando tudo muda, nada muda: "Quand tout change, rien ne change".

Prefiro o verbo "transformar". Pois não se pode menosprezar a forma, reduzindo-a a uma mera forma; subestimando a ideia de se alterar algo respeitando ainda os vestígios do que foi, do que o originou. Acho que Galiano concordaria com o meu argumento. Afinal, a moda não é sem forma, e revisitações elaboradas a partir de um novo olhar parecem mesmo caracterizá-la, não é?

Esse respeito de que falo não remete à mera preservação de formas e conteúdos, e muito menos de um significado que lhe é atribuído heteronomamente, mas à preservação de sua capacidade de produzir efeito, efeito na forma de um querer que ultrapassa o relacionamento com a coisa em si, promovendo um relacionar-se com o contexto em que se insere aquilo que foi transformado.

Freud entendia nossa capacidade de transformação - que Nietzsche atribuía à inventividade, e provavelmente influenciou Freud nesse entendimento - como efeito de nossas relações com os deslocamentos e condensações mentais de percepções, sentimentos e informações que, na forma de pensamento e motivados pela crítica, conduz-nos à ação de transformar a realidade.

Alberti - um arquiteto da segunda fase do Renascimento italiano com quem tenho instigantes relações intelectuais bem dialógicas, por assim dizer - chamava o campo onde elas acontecem de "canteiro mental". Freud o organizava em pelo menos três esferas: "Consciente, Pré-consciente, Inconsciente". De todo modo, parece tratar-se realmente de um espaço de trabalho pesado, ainda que invisível para nós. Nesse sentido, há algo mais contemporâneo que essa estrutura de funcionamento? Lidamos o dia todo com máquinas e desconhecemos quase absolutamente seus mecanismos internos. Parece que nossos mecanismos têm mesmo um quê de "maquínicos", como dizia Guattari, apesar de não os querermos ´mecanizados´. Essa confusão de termos em ato, de fato, não convém.

Em decorrência dessas afirmações, prefiro transformar esse provérbio que você me ofereceu em uma elaboração não tão sintética:

Percebemo-nos pelo que fazemos, incluindo o que fazemos para transformarmos nós mesmos e os modos como nos articulamos com a realidade - que nos condiciona - e com a alteridade - que nos lança a esse desafiador processo de funcionamento e fabricação ininterruptos, apesar de plenos de vazios. Um fazer-se que não prescinde de alguma reedição; motivada, talvez, por esses mesmos e inevitáveis vazios.

Na linguagem dos gregos, essa idéia é representada pela palavra "cibernética"; que expressa o princípio da retroalimentação (que possibilita aos organismos vivos resignificarem suas ações por meio da interpretação e avaliação de respostas anteriormente dadas). Parece-me que Norbert Wiener - inventor, em 1941, do termo "cybernetics" a partir do grego "kubernetes", que, aliás, significa piloto (aquele que tem que tomar decisões a partir dos condicionantes da realidade tal como se lhe parece) - entendia a cibernética como o mecanismo segundo o qual se realiza o equilíbrio flutuante que caracteriza o funcionamento dos sistemas dinâmicos.

O interessante é que a elaboração de Freud acerca do conceito de "Eu" - aquele que para fortalecer-se precisa tornar-se mais independente do Super-Eu, não sem apropriar-se de novas parcelas de sua capacidade inventiva, por assim dizer - sempre me remete à figura do Prático que, munido de seu barquinho minúsculo, conta menos com ele que com sua habilidade aprendida e aprimorada para lidar com os condicionantes 
  • geográficos, do lugar onde se instalou o porto 
  • meteorológicos 
  • das diferenças de pressão que causam os ventos, mas também daquelas
  • do capitalismo que, agravado pela globalização, quer os navios atracados - o quanto antes - para serem descarregados (um termo controverso, aliás, e que deturpa o entendimento que algumas pessoas têm de algumas das idéias de Freud, a meu ver)
  • os fluxos da maré 
  • os próprios mal-estares a que se encontra exposto por estar vivo. 

Esses mal-estares frequentemente originam-se de suas relações 
  • com o próprio corpo, 
  • com os outros e 
  • com a máquina onde trabalha, cujo estado de conservação geralmente deixa a desejar. 
Ah, essa última categoria também é, a exemplo das duas primeiras, tida como fonte de dor e frustração na literatura de Freud, mas ele foi menos específico nesse quesito, e a chamou de "mundo externo".

Quando um organismo vivo, como o Prático em seu porto e a partir de seu barco, responde de forma inédita ao conjunto de estímulos a que está exposto, pratica um complexo de princípios, que incluem: 

  • a capacidade de mais regularmente equilibrar-se no contexto em que se insere 
  • a habilidade de criar novas interpretações para as mesmas questões, novas respostas e, por que não?, novas questões. 

Responder questões não é mais que deslocá-las para um outro ponto onde serão novamente elaboradas pelo pensamento. Isso eu aprendi com o Pierre Caye, aquele filósofo francês contemporâneo, de quem já lhe falei. O que escreveu um posfácio magnífico à tradução que ele e a Françoise Choay fizeram do De Re Aedificatoria, escrito por Alberti em torno de 1452, e em latim.

Essa resignificação (com a qual, aliás, o trabalho da tradução de qualidade também dialoga, necessariamente), que caracteriza o processo cibernético, ocorre precisamente no espaço entre a pergunta e a resposta, a entrada e a saída; no espaço delineado pelo deslocamento: o espaço-entre. Sua dinâmica alude a um espelho que ao invés de refletir os gestos de alguém, reflete os efeitos que esses gestos provocam na alteridade, o que inclui o "mundo externo", a que Freud se refere. O que se vê remete, então, aos efeitos das ações que, por sua vez, resignificam e instigam novas ações.

Um processo que não se pretende nem espontâneo, nem compulsório, mas que pode ser aprendido e até mesmo tornar-se voluntário. A ele submetemos nossas pulsões ("Trieb", em Freud e Nietzsche), cuja força constante passa a já não mais consumir tanta energia física, psíquica, individual, coletiva, etc. Mas esse trabalho de haver-se incansavelmente consigo mesmo exige de nós, e cada vez mais, algo sobre o que nos alertou Guimarães Rosa e que não canso de repetir, esse, claro, sem reedição: 

"O que a vida quer de nós é coragem".

Te amo muito, Tio !!!!
Obrigada por me fazer pensar!



domingo, 3 de fevereiro de 2013

Episódio 2



Hoje fui às compras. Não comprei uma casa, mas modos de habitar. Muitos querem vendê-los, como se isso fosse possível. Penso que os construímos todos os dias, mesmo não tendo construído a casa. Tudo bem, concordo que às vezes é mais fácil quando se a constrói, mas nem sempre.

Morar não é o mesmo que habitar. A diferença entre eles começa justamente porque um pode ser comprado, o outro, não. Podemos comprar as coisas, não o conforto ou a beleza de sua disposição conjunta. Podemos comprar as janelas, mas não o vento que as faz vivas. E a vista, por assim dizer. Essa então, mesmo pagando à vista pode nunca valer o preço, ou ser logo perdida. É uma questão de sorte, que também não se compra. Compra-se apenas a ilusão dela, em bilhetes baratos.

Habitar demanda ação. Quem dera existisse mesmo um Plano Habitacional que nos tornasse  cientes de nossas responsabilidades mediante uma assinatura e um carimbo. Valeria até a pena ficar em fila e pagar a conta disso em suaves prestações... Mas o habitar vai além da moradia, não demanda esforço só de dinheiro. É preciso dar-se conta, mais do que ter uma conta. É preciso render-se ao esforço, mais do que esforçar-se para render. É preciso envolver-se para se desenvolver. Envolver-se consigo mesmo e com a produção de seus desejos, mais do que desejar algo pronto, externo ao seu próprio Eu. O fortalecimento deste não é sem o que lhe é exterior, que chega a ser imprescindível àquele. Mas o foco está na relação, e esta se organiza em torno do envolvimento, do habitar, da excelência de sua essência.

p.s. A foto é da casa de Charles Dickens, Bloomsbury, London, UK. 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Episódio 1



Hoje fui às compras. Comprei um pouco de chuva, pois minha alma trabalha melhor quando está molhada. Mas veio muita, e me assustei. Na hora da entrega, pedi que deixassem um pouco no Nordeste, que está carente, mas disseram que evaporaria antes de chegar lá. Deve ser igual a dinheiro quando se intenta que resolva sozinho as coisas. Carece toda uma atmosfera favorável para isso suceder. Na política, chama-se res publica, algo que também não se compra nem com mísseis, soldados, tanques, nem mesmo com a democracia representativa, por si só. A res é pública, mas não é automática nem imediata. Esse blog quer dizer dessas coisas, do que o dinheiro não compra nem sob tortura, ou melhor, nem sob cartão de crédito.

Aliás, uso o verbo comprar na falta de outro melhor, que designe formas imediatas de alcançar o que queremos. Mas não há "imediatez", palavra cujo sentido de "sem mediador" está se perdendo, com a globalização, em favor do fato de que ela mesma significa ´não demandar quase tempo nenhum para acontecer´. Um sentido fundamental, que desapareceu antes mesmo de nascer na última flor do lácio. Não alcançamos o que queremos se não nos tornarmos mediadores, se não tomarmos uma postura ativa e crítica diante de nossos desejos. Não, isso também não se compra, como o próprio verbo. Podem-se comprar palavras, mas não as ideias que as deslocam e condensam. Há dez horas capino frases para resumir aquilo que preciso dizer, mas o matagal continua o mesmo. Não é sempre que conseguimos fazer um dia produtivo no trabalho. Podemos comprar flores, mas não o seu florescimento.

Aí temos que aceitar o fato - outra coisa que não se compra - que há dias em que estamos mais propensos a jogar palavras fora que a investi-las conjugando pensamentos e ações. Não, não se compra uma ação; não essas que realmente fazem diferença. O que o capitalismo vende com esse nome é apenas a representação aleatória de uma ideia distante. Mas pode-se, sim, comprar a ideia de uma ação, que não nos dispensa de manter algum envolvimento ativo com o seu desenrolamento.

Envolvimento. Algo que também não se compra. Compra-se seu oposto: o desenvolvimento. E aí sofremos todos em desarticulação com as ecologias; do meio-ambiente, das relações sociais, da subjetividade humana. Essa subjetividade, que tampouco se compra; até porque demanda ser construída e já não há mais tantos interessados na edificação de si mesmos, há? Interessados em estabelecer relações com o mundo e com os outros, respeitando as singularidades? Diz que sim, diz que sim!!! Concordo que é mais fácil sair e comprar um estilo para si. E vesti-lo, e morá-lo, e guiá-lo sendo por ele conduzido inadvertidamente. Abstêm-se de nada, menos de elaborar o seu próprio olhar sobre si e a alteridade.

Aliás, o olhar também é algo que não se compra. Podem-se comprar óculos, lentes, delineadores, cílios postiços e máscaras que prometem triplicá-los, mas não se compra um olhar da mãe depois que ela desapareceu, como se diz em francês. Um eufemismo que também permeia a lembrança de quando os tínhamos, ainda que sob a força da moeda das gracinhas e "levadezas", como ela dizia. Seus adjetivos que não se ouvem mais, como "ideidosa", "sinapismo", "aviltante". Somos seres singulares até nas palavras que usamos, porque as inventamos a cada pronúncia. Não se compra o som da voz de alguém te dizendo bom dia, carinhosamente e com um beijo. Também não se compra o olhar do seu cachorro para você. Nem com um petisco. O olhar de quem escolheu te amar unicamente por afinidade de companhia e que tem nele sua única forma de comunicação. Além das lambidas, claro, todas elas "incompráveis". Talvez isso seja parte do que vale a vida. Não um valor que lhe seja atribuído heteronomamente, mas um valor que se compõe do que é realmente caro a cada um de nós e aos grupos que formamos juntos. 

Este blog fala de coisas transcendentais. Não porque místicas, já que a origem da palavra não nos remete a isso. Transcendentais são as coisas simples que nos fazem ir além de nós mesmos, e das conjunturas em que nossa realidade nos insere, para construirmos, inventarmos, reeditarmos modos de vida, procedimentos, regras, abordagens, conceitos. Como a leitura. Não podemos nos confundir: compram-se livros, mas a leitura é uma construção muito particular, ainda que permeável, beneficiada e instigadora do diálogo. Virtude que está longe de ser compulsória, apesar de poder ser aprendida até um dia tornar-se voluntária e passar a aperfeiçoar-se sob menor esforço. O prazer da leitura, da leitura em profundidade, não se aprende necessariamente na escola. É um processo que acontece em qualquer idade, desde que se mergulhe na poesia, ou mesmo na prosa poética de Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e tantos outros que, ansiosos em suas prateleiras, aguardam a chance de nos ajudarem a transformar nossas vidas. Um processo que articula fraternalmente diversão e concentração. Aliás, a convivência fraternal também não se compra, mas isso já é uma outra história...

p.s. Sobre a foto, trata-se de uma pessoa maravilhosa em todos os sentidos, que terá seu niver comemorado hoje na casa do avô, outra coisa que dinheiro nenhum no mundo compra. Se comprasse, eu teria tentado ter um; mesmo que fosse só por um dia.