Hoje fui às compras. Entrei numa livraria e pedi para ver os únicos dois volumes da linda coleção de Freud (Cia das Letras) que ainda me faltam entre os que já foram publicados. Como sempre, encantaram-me e me pareceram itens de primeira necessidade. Perguntei os preços: 55 e 56 reais, respectivamente. Como de costume, gasto sempre um pouco de sola de sapato antes de enfiar a mão no bolso. Refletir se o item de primeira necessidade é mesmo isso, ou tão urgente assim. Como precisava comprar o que levar a um chá de fraldas amanhã, entrei em uma farmácia. Um pacote de fraldas descartáveis: 58 reais. Comprei, pois o compromisso com o presente não me permitia adiamentos, mas estou até agora tentando desfazer os nós que isso deu na minha cabeça.
Este blog fala de coisas transcendentais, ou seja, das coisas simples que nos fazem ir além de nós mesmos - e do lugar em que nossa realidade nos insere - para construirmos, inventarmos, reeditarmos modos de vida, procedimentos, regras, abordagens, conceitos, compreensões. Como a leitura. Não podemos nos confundir: compram-se livros, mas a leitura é uma construção muito particular, ainda que permeável ao, favorecida pelo, e instigadora do diálogo.
segunda-feira, 28 de julho de 2014
Freud x Fraldas
Hoje fui às compras. Entrei numa livraria e pedi para ver os únicos dois volumes da linda coleção de Freud (Cia das Letras) que ainda me faltam entre os que já foram publicados. Como sempre, encantaram-me e me pareceram itens de primeira necessidade. Perguntei os preços: 55 e 56 reais, respectivamente. Como de costume, gasto sempre um pouco de sola de sapato antes de enfiar a mão no bolso. Refletir se o item de primeira necessidade é mesmo isso, ou tão urgente assim. Como precisava comprar o que levar a um chá de fraldas amanhã, entrei em uma farmácia. Um pacote de fraldas descartáveis: 58 reais. Comprei, pois o compromisso com o presente não me permitia adiamentos, mas estou até agora tentando desfazer os nós que isso deu na minha cabeça.
domingo, 6 de julho de 2014
Bedelho
Hoje fui às compras. Comprei um bedelho.
Só para poder metê-lo onde não devo. E como não devo nada a ninguém, vou meter
o bedelho dos dois lados.
Trata-se do futebol. Quem me deu o passe
foi o Sérgio Rodrigues* e, antes que a Copa acabe, vou levantar essa bola de uma vez. O
Sérgio disse no Manhattan Connection, agora há pouco**, que pensa se não se deveria acabar com o impedimento, argumentando que é
estruturalmente impossível para as mulheres entenderem essa regra do futebol.
Devo dizer, Sérgio, que por um lado
concordo com você e, por outro, não; mas não por esse motivo. As mulheres, se
quiserem, podem entender essa regra perfeitamente, do contrário, não poderiam
jogar e não teríamos Marta. Mas, em se tratando da maioria, digo
o motivo pelo qual acredito que seria possível defendermos o fim do impedimento: porque é
chato.
Entrando numa área onde não costumo me
aventurar, devo dizer que o impedimento é uma vingança masculina. Sabe aquele momento, no meio do amasso, quando elas driblam vocês e às vezes até jogam para escanteio?
Aliás, seria esse um dos motivos da mão ser "boba" no futebol? (Acho que Freud explica casos assim como "o retorno do recalcado", afinal, foram os homens que criaram essas regras...) E então, em contrapartida, naquela hora em que a gente se anima no sofá, o ritmo tá quente, quase lá... impedimento. Que coisa desagradável. Ficamos
decepcionadas, xingamos, largamos de lado, mas, vocês... reagem naturalmente. Não sabem como irrita ver que já sabiam que aquilo tudo não ia dar em gol!
Entendo que o argumento do Sérgio para o fim do
impedimento tinha o intuito de provocar uma maior identificação do público feminino,
mas, segundo Wisnik***, há quem diga**** que o goleiro representa a figura feminina no futebol, defendendo um espaço restrito que dez homens querem invadir quase ao mesmo tempo, o tempo todo. Se assim for, a figura
feminina já está representada em campo, Sérgio, as mulheres é que talvez ainda não tenham se ligado na coincidência: o goleiro é
fundamental, e o impedimento, seu maior aliado.
Justamente por isso, troco de camisa e
entro em campo no segundo tempo para defender o impedimento. Se o gol é a
soberania representada simbolicamente pela rede invicta e o impedimento não
existisse, os placares seriam uma devassidão.
Nessa bola dividida, podemos pensar é em
exportar o impedimento para outros campos. Já pensou se passarmos a praticá-lo
na política como o fazemos no futebol, ou seja, interrompendo as jogadas ilegais antes do
gol ser feito? Ahhhh, a gente ia era meter o ferrolho em muita gente!
** 06/07/2014, no canal GloboNews.
*** José Miguel Wisnik é músico e escritor, autor de "Veneno Remédio: o Futebol e o Brasil", 2008, Cia das Letras.
**** Wisnik alude a isso fazendo referência ao ensaísta espanhol Vicente Verdú. http://oglobo.globo.com/cultura/o-oraculo-13139125?topico=Jose-Miguel-Wisnik
**** Wisnik alude a isso fazendo referência ao ensaísta espanhol Vicente Verdú. http://oglobo.globo.com/cultura/o-oraculo-13139125?topico=Jose-Miguel-Wisnik
sexta-feira, 4 de julho de 2014
Passeio por três conceitos
Hoje fui às compras. Aproveitando as férias forçadas, comprei um passeio
por três conceitos. O pacote só anunciava um, os demais vinham a reboque,
inadvertidamente.
Diante das circunstâncias, nada mais apropriado que passear pelo conceito freudiano de "Luto", e tentar entender o que isso quer dizer. A primeira apreciação da paisagem do Luto nos mostra que ele tem um companheiro que não o abandona desde o primeiro instante: o Trabalho. Formam uma dupla inseparável, pois em se tratando de Luto, é do Trabalho do Luto que estamos falando. Como tudo o que envolve trabalho, há um investimento de energia psíquica nesse processo; dedicamo-nos a ele, consciente e inconscientemente. Claro que, quanto maior a parcela de consciência investida, melhores os resultados, mas a parcela inconsciente é inevitável. O objetivo do Trabalho do Luto é admitir viver sem o ente-objeto perdido, conseguir renunciar à sua companhia, assumir sua ausência declarando-o morto, assumindo também a vida que continua apesar e para além dele. Vale lembrar que a morte sobre a qual Trabalha o Luto pode ser literal ou simbólica, pois se aplica inclusive à perda de algo que não morreu de fato e também a abstrações como a pátria, a liberdade, um ideal, uma ilusão. Um dos efeitos do Trabalho do Luto praticado por um sujeito é o estabelecimento e a aceitação de uma distância entre ele próprio e o alvo, agora inerte, de seu amor. Sabe-se que essa distância é lugar por excelência para o cultivo da capacidade crítica na análise de si e da realidade em que se insere. É nessa distância que o sujeito se investiga em relação às coisas, e isso ocorre ao longo de um amplo e lento processo que envolve a transformação de suas relações com a realidade e das significações imbuídas nessas relações.
Diante das circunstâncias, nada mais apropriado que passear pelo conceito freudiano de "Luto", e tentar entender o que isso quer dizer. A primeira apreciação da paisagem do Luto nos mostra que ele tem um companheiro que não o abandona desde o primeiro instante: o Trabalho. Formam uma dupla inseparável, pois em se tratando de Luto, é do Trabalho do Luto que estamos falando. Como tudo o que envolve trabalho, há um investimento de energia psíquica nesse processo; dedicamo-nos a ele, consciente e inconscientemente. Claro que, quanto maior a parcela de consciência investida, melhores os resultados, mas a parcela inconsciente é inevitável. O objetivo do Trabalho do Luto é admitir viver sem o ente-objeto perdido, conseguir renunciar à sua companhia, assumir sua ausência declarando-o morto, assumindo também a vida que continua apesar e para além dele. Vale lembrar que a morte sobre a qual Trabalha o Luto pode ser literal ou simbólica, pois se aplica inclusive à perda de algo que não morreu de fato e também a abstrações como a pátria, a liberdade, um ideal, uma ilusão. Um dos efeitos do Trabalho do Luto praticado por um sujeito é o estabelecimento e a aceitação de uma distância entre ele próprio e o alvo, agora inerte, de seu amor. Sabe-se que essa distância é lugar por excelência para o cultivo da capacidade crítica na análise de si e da realidade em que se insere. É nessa distância que o sujeito se investiga em relação às coisas, e isso ocorre ao longo de um amplo e lento processo que envolve a transformação de suas relações com a realidade e das significações imbuídas nessas relações.
É sabido que as investigações de Freud
sobre os conceitos psíquicos frequentemente se apoiam na comparação e no
contraste. Averiguando elementos que em alguns pontos se articulam e em outros se
afastam, ele nos coloca diante de paisagens surpreendentes. Isso ocorre, por
exemplo, no momento em que vemos relacionados três conceitos: "Luto",
"Melancolia" e "Mania". É importante lembrar que, aquilo
que conceitualmente se mostra de forma isolada e relativamente clara, na
prática se apresenta geralmente enovelado; como uma mescla a demandar tempo, paciência e diligência na distinção e identificação do que a compõe. Entre os pontos de articulação desses
conceitos, Freud entende que a Melancolia também envolve Trabalho, mas os
resultados deste diferem dos almejados pelo Trabalho do Luto. Se a superação do
Luto pode devolver o sujeito a um esquema regular de relação com a realidade,
os efeitos da Melancolia são bem mais complexos. Entre os efeitos possíveis do
Trabalho da Melancolia estão o de levar o sujeito a substituir aquele
"objeto perdido" por outro, transferindo sua afecção junto com seu
afeto. A Melancolia também não está livre de questões relacionadas a afetos
inconscientemente abandonados, que podem inclusive ter sido substituídos por
outros afetos, tornando mais complexa sua análise e identificação. Enquanto o
Trabalho do Luto almeja resolver a questão, o da Melancolia parece pretender
criptografá-la, tornando-a inacessível e indecifrável tanto quanto possível. Nessa tarefa, a
Melancolia conta com sua amiga de longa data, a Mania. Apesar de serem ambas
geradas e alimentadas pelo Reprimido - instância de importância fundamental à
compreensão das afecções psíquicas e psicossomáticas - elas são radicalmente
diferentes nos sintomas que apresentam, e se revezam em aparições que tornam o
processo, e seus efeitos, ainda mais confusos e dissimulados. Por que esse revezamento? Porque
a Mania tem o papel de suspender a relação com a distância crítica, fazendo com
que permaneçam ocultos ao sujeito tanto o objeto do afeto e sua significação, quanto a necessidade
de trabalhar sobre sua perda. Correndo na esteira da Mania, o sujeito se
distrai e se desvia, investindo sua energia não no Trabalho do Luto, mas no que
o mantém disfarçadamente inerte quanto ao que deveria ser objeto de sua reflexão e
ação.
O Trabalho da Melancolia também é
demorado, como o do Luto; de lento progresso. Mas o desenlace característico da
Melancolia é que o investimento de energia anteriormente ligado ao objeto
desconecta-se dele e retorna ao sujeito. Assim, o investimento não é eliminado originando
a distância crítica - esta tão importante para o aprimoramento do sujeito e de
sua relação com a realidade - mas liga-se ao sujeito, evitando o estabelecimento dessa distância crítica. Assim, ao término do Trabalho da
Melancolia, o sujeito pode se achar ainda mais convencido de sua supremacia
diante da realidade. O que vale para ele é o que ele vê e não o que efetivamente se passa. Para reforçar essa posição, a Melancolia convoca a Mania,
e o alívio da suspensão que ela provoca torna-se condição para a sobrevivência do
sujeito.
O Luto foi decretado. Essa medida,
talvez necessária, está longe de ser suficiente para que o Trabalho comece. Com
o tempo, será possível saber se o que predominou foi o Trabalho do Luto ou da
Melancolia. Se for desta, à Mania caberá anunciar.
p.s. Em sinal de Luto, este post não tem imagem. O Trabalho do Luto tratará de criá-la em nossa imaginação.
FREUD, Sigmund. Obras Completas. Volume 12. Luto e Melancolia. [Trauer und Melancholie ](1917 [1915]).
In: Introdução ao Narcisismo, ensaios de
metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. Pag. 170-194.
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