sábado, 25 de janeiro de 2014

Or-ação

    Fonte: http://www.openstreetmap.org/#map=17/-1.26231/36.85679


Hoje fui às compras. Comprei outro oximoro: uma oração que mais pede que agradece, como todas. Pede para manter o olhar atento e o faro ligado, e agradece o potencial para realizar isso. Uma oração que pede ajuda para que se aprimore cada vez mais a ação, a percepção, a crítica; que pede o afastamento da psicopatia, da letargia, e também de sua liturgia. Uma oração cujo conteúdo é seu próprio nome, que carrega, em si, sua alternativa: or-ação.

p.s. Muitas áreas de Nairóbi, no Quênia, impressionam pela quantidade de igrejas. O mapa mostra a região da favela de Mathare, mas o mesmo é visto em Kariandundu, Kibera... Só que esse fenômeno, que talvez se faça entender também como sintoma, faz-se perceptível através do mapeamento. A "realidade" da vista aérea dissimula "as realidades", inclusive as espectrais, que o mapa torna visíveis.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Triplo-diploma-twist-carpado


Hoje fui às compras. Comprei um diploma. Já não basta mais ser analista de sistemas; entender que está tudo articulado com considerável  grau de complexidade, identificar as articulações, as ambiguidades, dissecar os processos, armazenar os registros. É preciso ser também analista de esquemas; para poder dizer "não" sem perder a razão nem a integridade. Dizer "sim" ao critério, ao "revirão", e "não" à ingenuidade. Esse "dizer" não é comprado, tem que ser arquitetado. Nenhum diploma pode ser desperdiçado.

p.s. A foto é do bairro Vale do Sereno, Nova Lima, RMBH, Minas Gerais.
O "revirão" é um princípio sobre o qual fala José Miguel Wisnik, em http://www.youtube.com/watch?v=jXmfFv2iEUY

Stand Up Poetry



Hoje fui às compras. Comprei  ingresso para o prazer de ouvir alguém dizer uma poesia com humor. “Gastei uma hora pensando em um verso que a pena não quer escrever”(1). Como não rir dessas nossas pequenas tragédias, se bem ditas; tão mais instigantes que os dramas cotidianos cujas piadas nada acrescentam à nossa “ignorãça”(2).  A via do humor é mesmo um dos caminhos para a consciência, mas precisa ser um humor tão raso? “Ocupo muito de mim com o meu desconhecer”(2). Ocupar-se é diferente de distrair-se, de evadir-se para um estado de negação.  Não dá para fugir é de arrepender-se do tempo perdido. Mas, para isso, também é preciso ter consciência. “Fiz de mim o que não soube e o que podia fazer de mim não o fiz”(3). Mesmo rasos, a comédia em pé, os seriados, os avatares digitais não nos eximem da tragédia que representam. Como diz Wisnik, “diante da tragédia, não faça drama, a tragédia é um outro gênero.”(4) 

Parece-me melhor a tragédia da incerteza que o drama da ignorância.


“Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! [...] 
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! 
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?”(3)

Notas:

A foto é do The Old Vic, teatro londrino onde diversão, cultura e civilização aninham-se em camadas. Ocupam "o mesmo ponto, sem superposição nem transparência", como diz Borges (5).

(1)    ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 2002.
(2)    BARROS, Manoel de. XXI. In:___. O livro das ignorãças. Disponível em http://comvest.uepb.edu.br/concursos/vestibulares/vest2013/Manuel_de_BarrosO_Livro_Das_Ignoracas.pdf
(3)    Poema Tabacaria, de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), disponível em http://arquivopessoa.net/textos/163
(4)    José Miguel Wisnik, em palestra disponível em http://www.youtube.com/watch?v=jXmfFv2iEUY
(5)   Jorge Luis Borges, no conto "O Aleph", disponível em http://epoca.globo.com/edic/657/657_trecho_O_Aleph.pdf

sábado, 18 de janeiro de 2014

Nascente


Hoje fui às compras. Comprei uma nascente. Muitas existem em propriedades rurais, e a elas deve-se deixar o acesso livre para quem careça água de beber. A urbanização lhes serve de ameaça e, tal como é praticada hoje, não atinge apenas o acesso à água, mas toda uma cultura de solidariedade com o outro e de relação com a terra em que se vive. A importância da nascente vai muito além do direito de propriedade, muito além do que pode ser adquirido em troca de dinheiro, muito além do que pode ser calculado em moeda de troca. A nascente tem suas próprias moedas de troca; uma delas é o tempo. Deixar perder-se a nascente, negligenciá-la, secá-la, soterrá-la são ações que exprimem o que os indivíduos fazem também consigo mesmos e com as coletividades em que se inserem. Negam a hipótese de viver no presente e no futuro. Destroem suas possibilidades de ir além de si mesmos, do valor que lhes é atribuído pelos outros e ao qual eles não têm necessariamente que se ater. Desperdiçam suas nascentes pessoais: a energia que neles brota a cada instante, e que podem fazer durar. Essa é a nascente que comprei hoje: a escolha por ser nascente, crescente, vivente, contente, presente, premente... para, só depois, morrer.