Este blog fala de coisas transcendentais, ou seja, das coisas simples que nos fazem ir além de nós mesmos - e do lugar em que nossa realidade nos insere - para construirmos, inventarmos, reeditarmos modos de vida, procedimentos, regras, abordagens, conceitos, compreensões. Como a leitura. Não podemos nos confundir: compram-se livros, mas a leitura é uma construção muito particular, ainda que permeável ao, favorecida pelo, e instigadora do diálogo.
terça-feira, 29 de outubro de 2013
Bolsa-sem-alça
Hoje fui às compras. Comprei uma bolsa-sem-alça. Não, não é o diminutivo de mala-sem-alça, mas um dispositivo pela emancipação. E nem mesmo é sem alça, pois tem três, e todas podem ser usadas - ou não. O que começou sendo feito em lona, agora existe também em couro, falso ou verdadeiro, à escolha. Assim, acompanha a roupa menos esportiva de quem trabalha e se diverte com elegância, num esquema 24x7, tudo-ao-mesmo-tempo-agora. Uma releitura que prova ser possível a qualquer um tornar-se melhor com o tempo. Mas como tudo o que é pós-moderno costuma ter pelo menos dois lados, o valor da sem-alça-três-alças reside não tanto no objeto em si, ou no que representa, mas no efeito que provoca: hands free. Agora as mãos são livres para tirar foto, usar o smartphone, retocar o make, concentrar-se no e-book, atravessar a rua com os kids e dar um super hug no love sem nocaute. (Só quem já levou trombada de bolsa sabe como atrapalha um abraço.) Ao contrário da velha bolsinha-de-catar-amora - em que nada cabe e ainda sequestra uma das mãos - o nome desse artefato em inglês é crossbody bag. De fato, representa bem uma cruzada. Uma cruzada que as mulheres empreenderam através do tempo. Pensar que, em cem anos, passaram de seres que sequer tinham o direito de votar a sujeitos que têm direito de escolha. O direito de não ser nem ter mala-sem-alça na vida. O direito de ter as mãos livres para escolher crescer.
sábado, 26 de outubro de 2013
Belo anjo
Hoje fui às compras. Comprei um céu de duas cores, que depois transformaram-se em outras duas. Comprei a sorte de pegar carona com a família, a alegria de sair do trabalho e passar na padaria tendo para quem levar o pão. A felicidade de trabalhar com o que gosta, e de fazer isso com entusiasmo. A tranquilidade de ter um anjo da guarda que me acorda quando esqueço de programar o despertador; o mesmo anjo que me ensinou a escovar os dentes e usar maquiagem, hábitos edificantes para uma vida inteira. Um anjo que sempre se interessou pelo que eu sentia e me ensinou a tornar a vida mais leve, mais livre. Um anjo que pregou em seu espelho uma frase de inesgotável sentido: "O segredo de viver bem é fazer do dever um prazer." Um sentido que explica, talvez, o meu prazer em arrumar a cama, estudar, trabalhar. Um anjo que soube pintar o céu com as melhores cores para que hoje eu pudesse comprá-lo no desvelar desse novo - e às vezes belo - horizonte.
A foto mostra a cidade onde nasci, que não é Belo Horizonte.
Novo trabalho
Hoje fui às compras. Comprei um novo trabalho - e pelo preço
de uma inscrição em concurso. Isso significa que comprei um lugar no mundo, incluindo
um prédio recheado de pessoas interessantes no bairro em que vivi minha adolescência.
"Tudo ido e lido e lindo, e vindo do vivido da minha adolescidade, idade de pedra e paz" diz
Caetano; e eu endosso. Apesar de passar por esta esquina com frequência, nunca
tinha reparado no aconchegante café instalado no térreo, algo que faz parecer
estarmos hospedados em um agradável hotel familiar, apesar de não tão pequeno.
Talvez como a própria Belo Horizonte pretendeu-se, um dia. A questão é cuidar
para que ela não perca de todo essa graça, que é parte da personalidade de uma
cidade criada no berço do modernismo e que, um século depois, insiste em não
enterrá-lo, apesar de morto. É tempo de favorecer a organicidade que nos articula
aos lugares a partir dos sentidos: o cheirar, o caminhar, o sentar-se, o prazer
de fazer tudo isso sob as árvores em sombra e flor, o contato da pele de cada
um - e das roupas e das solas dos sapatos - com os acabamentos e formas que compõem
a pele do ambiente construído. O gosto do café com pão-de-queijo das esquinas,
o olhar a paisagem urbana querendo mesmo compreendê-la; o olhar das pessoas
que, olhando-a, vêm-se também a si mesmas - tanto individual quanto
coletivamente - até construírem uma voz. Aprimorar essa capacidade de
envolver-se pode tornar-nos menos analfabetos em urbanidade e sentimento de pertença.
Lembro-me de ter lido sobre um garoto lisboeta que mostra ser mestre nessa arte. Indagado
sobre de que parte da cidade ele é, afirma categórico: "De toda". Instigar
essa eloquência sinédoque parece ser o efeito invisível mais importante desse novo
trabalho em que mergulho.
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