quarta-feira, 28 de agosto de 2013

"Acrilírico"


Hoje fui às compras. Comprei uma imagem do que viam, antes, meus olhos. Só para contrastar com as cores e as minúcias que vejo agora, de longe. Abelhas em festa na amoreira em flor. Lagarto estendido ao sol, olhos esbugalhados, cabeça que vai e vem, e a língua também. Coelhos que sabem que são vistos, e tremem focinhos, fingem falar. Parece que ganhei uma lupa trabalhando dentro da minha cabeça. Ou virei Alice, fiquei pequena e estou tão nas coisas quanto elas em mim. Tenho nos olhos um produto do progresso da ciência e da técnica e da arte de Raíssa. Um artifício que rememora o esforço e reforça o que há de mais humano no homem: sua capacidade de pasmar-se. Agora passo horas só olhando, olhando. Quem quiser ter olho grande, tenha, mas os meus são acrilíricos; dão um nó no tempo, e só enxergam poesia e amor.

p.s. A imagem primaveril é do pintor inglês J.W.Waterhouse.
p.s. As aspas do título fazem-me devê-lo a Caetano, que inventou esta palavra em texto esplêndido de 1969. Pode-se ter acesso a ele em http://www.radiobatuta.com.br/Episodes/view/371.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Dia de Madame



Hoje fui às compras. Comprei um dia de madame. Acordar e esperar para ver se acordou mesmo. Decidir levantar podendo mudar de ideia. Encontrar o café pronto e degustá-lo com baixas calorias (ou quase...). Passar as capas dos estofados que o marido lavou ontem porque ela ainda não pode pegar peso. Sentir o prazer do cheiro de roupa limpa e do tecido desenrugando. Colocá-las no lugar e admirar o resultado por minutos sem conta. Ligar para ele só para ouvir a voz e rir um tanto. Conferir e-mails. Enviar documento solicitado. Buscar na horta um pouco de manjericão para o risoto do almoço. Preparar com carinho picando os pimentões bem miúdos. Degustar a nova receita e depois curtir um pouco da sobremesa que restou do domingo. E com café passadinho na hora. A essa altura, descobrir que os filhotes virão almoçar. Preparar rapidamente um strogonoff, arroz branco e alegria para sentarem-se todos à mesa. Resistir à tentação de comer sobremesa de novo com eles. Banho relaxante. Shampoo cheiroso. Máscara no rosto; exfoliante. Depois outra; anti-idade. Sentir o prazer do cabelo limpo e da pele desenrugando. Ideia de ir ao supermercado no meio da tarde. Guardar compras sentindo prazer de armário cheio. Deixar a verdura lavada e pronta para as saladas que virão. A madame não sabe o que terá para comprar amanhã. Mas se for um período longo de trabalho pesado - e ela nunca resiste a isso - pelo menos terá descansado hoje. 


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Tarde em espera


Hoje fui às compras. Comprei um Turner na minha janela. Enquanto espero, seco os cabelos, sento-me numa cadeira. "Em que hei de pensar?", diria Fernando Pessoa*. Observo a tarde que esmaece. Suas cores, nem sei de tão belas. O céu parece convidar a olhar. Hoje posso ver cada detalhe das nuvens que não se incomodam com o devagar do vento. Agora vejo as figuras que formam, pois há muito só as imaginava. Nem sei mais quanto tempo já faz. Seja por causa dos olhos ou do tempo, ou da falta deles. Hoje não me faltam mais. Mas anseio pela falta de tempo. Não gosto do efeito que sua sobra faz. Mas quando o tempo sobra, razão há. É só procurar, principalmente no futuro, a explicação. Mas não vivemos mais de explicações. Nem a ciência, quase. A questão é solucionar o caso. E isso, hoje, significa aprender a esperar. Consolando-me, parafraseio uma citação que o Marcelo Jabour faz em seu poema "Lascas", e digo: quando se está pronto para agir, difícil é fechar o olhos e sonhar.

*No poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A matemática da faxina



Hoje fui às compras. Comprei um exercício de matemática em forma de faxina. O enunciado diz assim:

Simplificar as contas
os escritos
os guardados
os não-ditos e os não-feitos.
Tirar o máximo divisor comum
de todas as histórias
cruzar as referências,
descobrir por cartas e fotos
de quem chegamos, ou não, a conhecer 
(o que, muitas vezes, dá no mesmo...)
como a vida lhes parecia,
ou como queriam que lhes parecesse.
Tirar o mínimo múltiplo comum
de todas as virtudes
e de todos os defeitos que herdamos
(por escolha ou por destino, quem sabe?)
e aprender que tudo isso mais se mescla que se isola.
Fatorar todas as gavetas até descobrir o resto da divisão:
essa coisa de descarregar quase tudo 
na leitura, na escrita, na fotografia
também é herança de família.
O resultado dessa conta é sempre o tempo
não o tempo que ganhamos ou perdemos
mas como o aproveitamos.

p.s. Poema de Laurindo Rebello que meu avô copiou em seu caderno. Abril de 1921.