quarta-feira, 26 de junho de 2013

Reconhecimento


Ontem não fui às compras. A ideia era providenciar um presente para uma amiga muito querida que fazia aniversário. Não saberia o que comprar, então decidi produzir algo; a que dei o nome de Reconhecimento. Evidentemente ela não precisa disso, mas pode ser tentador colecionar mimos que não ocupem espaço.

Não é a primeira vez que faço isso em relação a ela. Nosso raggionare amichevole já foi reconhecido em outro instrumento de troca que produzimos juntas. Mas hoje vamos além. Reconhecer a importância do que a existência e presença de alguém constrói em nós pode ser uma tarefa extremamente fácil e agradável, mas cuja exposição não  dispensa alguma clareza, nem que seja a meramente cronológica.

Nossas primeiras trocas aconteceram quanto ela me ofereceu a mão depois de uma queda imensa que sofri. Aos poucos, ajudou-me a reconstruir o chão que sob meus pés parecia insistentemente esvair-se. Inicialmente construímos estruturas de suporte imediato e, guiadas por sua cautela, paciência e perseverança, pudemos paulatinamente erguer novas estruturas sobre aquelas parcialmente destruídas e sobre um solo mais firme que aos poucos fazíamos existir.

Erguido o corpo, capaz então de caminhar com suas próprias pernas, era necessário fazer com que a cabeça também se erguesse tornando-se passível de produzir alguma dignidade. Esse é, sim, um trabalho que nunca termina, mas que em algum momento precisa começar. Isso também não tem como acontecer sem ajuda de alguém reconhecidamente esclarecido a respeito de todo esse processo, alguém cuja capacidade de lidar com as limitações e resistências do outro ultrapassem o talento, a habilidade, a dedicação, de uma maneira que eu não saberia converter em palavras.

Consigo apenas dizer que o solo firme que construímos tem se oferecido como lugar para uma pista de decolagem, onde a cabeça erguida começa a querer enxergar e agir para além do horizonte visível. A construção dessas estruturas a um só tempo firmes e flexíveis - que você favorece a cada incursão - ajudam a produzir a coragem de alçar vôos não-lineares, topológicos; que não se abstêm do contato nem com a multiplicidade da própria subjetividade, nem com a das realidades em que nos inserimos ou almejamos produzir, nem com o que pode haver nos interstícios desses trajetos. Não se trata apenas do reconhecimento da ação e do terreno, mas da disposição que se amplia e se fortalece ao procurar re-conhecê-los.

domingo, 23 de junho de 2013

Todo estádio tem, pelo menos, dois lados: o de dentro e o de fora, o norte e o sul, o de fato e o de direito, o real, o simbólico, o imaginário...


Ontem fui às compras. Comprei fatos. Fatos e enganos. Procurando viver os dois lados da mesma moeda, fomos ao Mineirão ver o jogo Japão x México, da Copa das Confederações. Não, não compramos ingressos, eles nos foram dados de graça. Devido ao baixo quorum do jogo anterior em Belo Horizonte, o estádio sob custódia da FIFA só teve a lotação de ontem, de 52690 pessoas, depois de tomada a iniciativa de distribuir ingressos para um seleto público. Mas a verdadeira falta de graça estava só começando.

Depois de irmos à manifestação na Praça Sete de Setembro, no centro de Belo Horizonte, pegamos o ônibus disponibilizado pela prefeitura e rumamos para a região da Pampulha, onde fica esse estádio, recentemente reformado para os eventos esportivos que se anunciam. Para tornar possível uma logística razoavelmente aceitável, impressionou-nos a quantidade de pessoal contratado, seja para organizar as filas, recolher os ingressos, verificar se todos estavam sentados e prontos para partir. Ficamos imaginando se todos esses recursos - financeiros e humanos - tivessem sido investidos em um sistema de transporte que pudesse se perpetuar, através do cotidiano dos trabalhadores, para muito além das poucas semanas em torno de campeonatos esportivos.

A quantidade de policiais posicionados para resguardar a mínima parcela de gente que se dirigia ao estádio era proporcional à sua postura solícita e protetora do lazer desses premiados civis. Premiados com a alienação, diga-se de passagem. Pois nem dali, e tampouco de dentro do estádio, era possível ver o que ocorria na ala oposta do Mineirão, onde esse mesmo número de pessoas juntava-se em protesto, como também nós o fazíamos, alguns minutos antes, na Praça 7.

De dentro do estádio ninguém via nem ouvia nada. O monótono jogo transcorria sem jogadas ameaçadoras e, enquanto os torcedores se enfileiravam para pagar 9 reais por uma Brahma e 6 por uma Coca-cola, do lado de fora, helicópteros, bombas de efeito moral, cavalarias e tropas de choque ameaçavam e agrediam os que protestavam diante de uma dessas monumentais Embaixadas da FIFA no Brasil.

Mas entre os fatos que trouxemos para casa ontem, há uma relíquia de que felizmente ainda não nos abstivemos: a Declaração Universal de 10/12/1948. Proclamando que "os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão", ela clama para que tenhamos "condições de vida em uma liberdade mais ampla". Os policiais que protegiam a ala sul do Mineirão, onde entravam os "turistas", pareciam saber que essa regra é clara, mas os da ala norte não pareciam dar-se conta de que também eles são pessoas "dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade." Vale lembrar que muitos soldados nazistas também não tiveram discernimento para dizer "não" às ordens que recebiam. Que tipo de seres humanos são esses, afinal?

p.s. O outro lado da visão pitoresca do Mineirão, que a foto acima ilustra, pode ser vista no vídeo que editamos em: http://youtu.be/2W-74fYH7Cs




quarta-feira, 19 de junho de 2013

Ponto, parágrafo.


Hoje fui às compras. Esbaldei-me: comprei metáforas. Para bom entendedor, um pingo é letra, e queremos por os pingos nos is e um ponto final nos gestos vazios. Já não suportamos mais essa ideologia liberal de "vitimância", que reduz a política a um programa de meramente adiar o pior fazendo o mínimo, renunciando ao que possa de fato favorecer transformações em nossas realidades. Nosso ponto não é, contudo, um ponto final, é um "Ponto, parágrafo."

Sendo já bem conhecida a inépcia dos psicóticos para lidar com metáforas, facilitemos a compreensão disso para aqueles que constroem realidades paralelas e nelas se refugiam criando procedimentos - burocráticos - que os ajudam a evitar o que existe. Precisamos de cura é para vocês, psicóticos no poder, que só escutam o que querem, erram o alvo, trocam os pés pelas mãos e, quando são encurralados, ou fogem ou suicidam-se.


"20 centavos" não correspondem apenas ao aumento na tarifa de ônibus, mas ao que resta da nossa paciência. Aprendam rápido a fazê-los render, ou poderão vê-los transformados em "Tolerância zero". Não suportamos mais as humilhações a que nos deixamos submeter por tanto tempo. O medo do que há de vir não nos impede mais de enfrentar um cinismo que já dura quinhentos anos. Nossas escolas precisam nos capacitar a fazer escolhas, a fortaceler a produção crítica em forma, conteúdo e presença. Sem esse engajamento, não há desenvolvimento. O desenvolvimento que queremos não é, como vocês adorariam que fosse, o contrário de envolvimento. O tempo de "eles dizendo para nós como queremos viver" acabou. Ponto, parágrafo. Queremos uma pele firme e flexível que nos envolva individual e coletivamente, que nos favoreça o crescimento intelectual e produtivo no exercício de nossos direitos e no cumprimento de nossos deveres como seres humanos e cidadãos. Não há atalho para esse processo. Queremos provocar o terror, não a violência. Queremos que tenham medo de perderem suas cabeças, como nós temos de perder a vida por "20 centavos" todos os dias. E que vivam com isso. E que trabalhem apesar disso. E que trabalhem bem. Sim, viver implica trabalho, inquietação.  Uma inquietação que combate a petrificação, pois a inquietação é a própria vida. Sim, Zizek, vivemos em tempos de por pontos finais naquilo com que não queremos mais viver. Em tempos a um só tempo interessantes e difíceis, tempos de múltiplos e diversos novos inícios. Tempos plurais para os quais não queremos cura. E quanto à velha escolha entre a bolsa e a vida; sim, escolhemos a vida e a escolha. Ponto, parágrafo.

p.s A referência a Slavoj Zizek remete ao seu livro "Living in the end times", traduzido no Brasil como "Vivendo no fim dos tempos". Ora, não estamos vivendo no fim dos tempos, mas sim, no tempo dos fins. Acho que é isso o que ele quer dizer.